SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Mesmo com a pressão global pela transição energética e pela redução de poluentes, a expansão das ferrovias no Brasil deve seguir bem atrás dos projetos de estradas nos próximos anos.
Atualmente, segundo a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), há seis projetos de concessões de trilhos em andamento no país por parte do governo federal. Ao mesmo tempo, há 21 de concessões de estradas sendo preparadas.
Um levantamento da Abdib (Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base) aponta que há 19 leilões de infraestrutura previstos no Brasil para 2023 e 2024, e apenas um deles é ferroviário –o trem intercidades do Governo de São Paulo.
Em entrevista ao jornal Valor Econômico, em junho, o ministro dos Transportes, Renan Filho, estimou que haverá cerca de R$ 70 bilhões para investimentos públicos em estradas e ferrovias nos próximos quatro anos. Renan disse que a maior fatia desse dinheiro será direcionada para as estradas, pois a maior parte das ferrovias deve ser construída com recursos privados.
O governo Lula deve lançar um novo PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) até agosto, que deve juntar vários projetos de concessão já anunciados e algumas novas iniciativas.
No dia 3 de julho, o presidente Lula (PT) foi a um evento de início das obras da Fiol (Ferrovia de Integração Oeste-Leste), em Ilhéus, na Bahia. A obra é feita sob concessão e deve ficar pronta em 2027. Lula disse que esta será a primeira obra a integrar o novo PAC.
O primeiro trecho da Fiol tem 537 km e vai de Ilhéus a Caetité, no sudoeste da Bahia. O projeto completo prevê levar os trilhos até Figueirópolis, em Tocantins, onde haverá a conexão com a ferrovia Norte-Sul, em um traçado de 1.527 km. Os outros dois trechos ainda aguardam o processo de concessão.
O aumento de investimentos públicos em infraestrutura, contudo, depende de mais espaço no Orçamento. “Para continuarmos com investimentos nos dois modais, é necessário aprovar a proposta do Regime Fiscal Sustentável [arcabouço fiscal] e a Reforma Tributária. A intenção é manter o nível de investimentos públicos em rodovias e gradativamente aumentar em ferrovias, que hoje a maior parte está sob administração privada”, disse o Ministério dos Transportes, em nota.
Em junho, o governo Lula lançou uma nova política de concessões rodoviárias. A pasta dos Transportes trabalha agora em uma política similar para as ferrovias, que deverá rever os processos de concessão e autorização, para atrair mais investimentos e aumentar a segurança jurídica.
Entre as medidas, está a criação de uma Política Nacional do Transporte de Passageiros e de um Laboratório de Inovação. De acordo com dados da ANTT, o Brasil tem hoje cerca de 32,6 mil km de ferrovias construídas.
Em 2021, o governo federal criou o Marco das Ferrovias, que trouxe o modelo de autorização. O governo apenas dá o aval a projetos de construção de trilhos pela iniciativa privada, sem realizar etapas como fazer leilões ou investir recursos públicos.
Neste ano, já foram firmados dez termos de adesão. A lista, no entanto, inclui trechos curtos, como uma ferrovia de 12 km no porto de São Luís, no Maranhão, e projetos que ainda precisam captar recursos, como um trem de alta velocidade entre São Paulo e Rio de Janeiro.
De acordo com a ANTT, desde 2021 -quando o Marco das Ferrovias foi sancionado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL)-, mais de 30 contratos de adesão foram registrados.
Para Gesner de Oliveira, economista e professor da FGV (Fundação Getulio Vargas), o regime de autorizações ajuda a atrair o capital privado, já que exclui a necessidade de um rito mais complexo e demorado, como é o caso da concessão.
Ele diz, no entanto, que é necessário cautela com o modelo. “Quando o novo marco ferroviário foi aprovado, os planos de investimentos do setor privado cresceram significativamente. A gente tem que olhar com cuidado, porque são intenções de investimentos. Uma coisa é intenção e outra é quando realmente há compromisso de investimento.”
Roberto Guimarães, diretor de Planejamento e Economia da Abdib, avalia que os projetos de ferrovias mais curtas, que têm custo reduzido, atraem dinheiro privado mais facilmente. Para ferrovias maiores, no entanto, o ideal é que os investimentos sejam divididos entre empresas e governo.
“O setor privado sozinho não banca uma ferrovia estruturante que tem 800 ou 1.000 quilômetros. O custo de investimento é muito alto. Ferrovia é mais cara, mas o retorno é melhor. Se é mais cara, o capital privado não pode ir sozinho”, afirma.
De acordo com o Ministério dos Transportes, os valores aplicados via Orçamento da União no modal ferroviário vêm caindo nos últimos anos. Enquanto em 2014 o montante foi de mais de R$ 2,8 bilhões, o número encolheu para R$ 342,6 milhões no ano passado. A criação do teto de gastos é apontada como uma das principais razões para a queda.
Uma alternativa que vem sendo usada pelo governo para custear novas obras é negociar renovações antecipadas com concessionárias de ferrovias. A Vale, por exemplo, aceitou como contrapartida construir o primeiro trecho da Fico (Ferrovia de Integração Centro-Oeste) como parte do acordo para estender outros dois contratos.
Além da preocupação fiscal, especialistas apontam um descaso dos próprios governantes com o setor ferroviário. Segundo eles, como as obras normalmente demoram mais que o mandato do político em exercício, há pouco interesse em levá-las para frente.
“Tem que ter uma política pública de Estado, não de governo, porque são processos mais demorados e que passam de um governo para outro. Se o governante não tiver uma reeleição ou um sucessor, ele entende que não deve dar continuidade ao projeto. Isso é muito ruim”, diz Vicente Abate, presidente da Abifer (Associação Brasileira da Indústria Ferroviária).
FERROGRÃO
Obras de infraestrutura, como ferrovias, também enfrentam entraves ambientais. A Ferrogrão –que pretende escoar produtos como milho e soja do Mato Grosso ao Pará– é um exemplo. Situado no meio do trajeto da ferrovia, o Parque Nacional Jamanxim precisaria ter sua área alterada para que a ferrovia possa ser feita.
Durante sua gestão, o ex-presidente Michel Temer (MDB) chegou a alterar os limites da floresta, mas, em março de 2021, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, suspendeu a lei em liminar.
No fim de maio, o ministro liberou a retomada da análise dos estudos da obra, que tem 933 km de extensão e ainda não foi iniciada. Determinou, porém, que o Cesal (Centro de Soluções Alternativas de Litígios), órgão do Supremo, apresente em 60 dias sugestões para a solução do caso.
Juliano Assunção, diretor do Climate Policy Initiative, filiado à PUC-Rio, afirma que a construção da Ferrogrão poderia causar um impacto potencial de desmatamento da ordem de US$ 1,9 bilhão (mais de R$ 9 bilhões), se nenhuma medida de mitigação for implementada.
“Não podemos trazer as discussões ambientais apenas quando a obra já está licitada. O ponto básico é pensar num processo em que a gente introduza filtros de maior granularidade à medida que se avance nas etapas dos projetos, evitando a implementação de empreendimentos de má qualidade.”
Ainda de acordo com o pesquisador, também há problema na delimitação da área de influência da obra, que, segundo ele, fica restrita ao entorno da construção. “Para o caso de uma ferrovia como a Ferrogrão, isso fornece uma visão estreita sobre o real impacto, tanto no sentido positivo de geração de renda e de emprego quanto a eventuais riscos sociais e ambientais”, afirma.
PAULO RICARDO MARTINS E RAFAEL BALAGO / Folhapress