SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – “É uma tragédia gigantesca. Não lembro se na história recente da Bahia tem algo dessa proporção. É algo realmente assustador o número de casas, de ruas e de localidades completamente embaixo dágua”, afirmou em dezembro de 2021 o então governador da Bahia e hoje ministro Rui Costa (PT).
O cenário era, de fato, desolador. Entre novembro de 2021 e janeiro de 2022, os temporais na Bahia deixaram 27 mortos, 523 feridos, 30 mil desabrigados, 190 cidades em emergência e quase 1 milhão de pessoas atingidas, segundo a Defesa Civil.
Dois anos após a tragédia, famílias que ficaram desabrigadas nas enchentes voltaram a morar em áreas de risco por falta de opção e enfrentam o medo a cada nova temporada de chuvas.
Enquanto isso, a Bahia segue sem projetos estruturais para conviver com eventos climáticos extremos. Também não há planos mais amplos para minimizar os danos causados por enchentes e enxurradas, nem sistemas de alerta com sirenes e treinamento para moradores de áreas mais sensíveis.
O governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), afirma que a gestão tem realizado obras de infraestrutura como contenção de encostas, drenagem de bacias e até o desvio do curso de rios. Mas admite que o volume de recursos e o ritmo das obras está aquém do necessário.
“Não houve tempo suficiente nem dinheiro porque a gente não tinha [antes] o governo federal com a gente para fazer Minha Casa, Minha Vida e tirar essas pessoas das áreas de risco. Pelo menos agora temos o apoio do governo federal”, diz o governador.
Dados do Adapta Brasil, plataforma do Ministério da Ciência e Tecnologia que avalia os riscos de eventos climáticos nos municípios, apontam que 37 cidades baianas possuem risco “muito alto” de desastres hidrológicos como enxurradas e inundações. Outras 110 cidades têm risco considerado “alto”.
Uma das cidades classificadas com risco “muito alto” é Itamaraju, no extremo-sul da Bahia. O município foi um dos epicentros do desastre de 2021, com a destruição de estradas, pontes e a inundação de centenas de casas. O rio Jucuruçu, que corta a cidade, registrou sua maior cheia em 35 anos.
No pico das chuvas, quando as áreas ribeirinhas foram inundadas, parte das famílias fugiu para casas nos bairros nas escarpas dos morros, considerados mais seguros. Mas foi justamente em uma dessas áreas onde aconteceu um dos capítulos mais trágicos daquela enchente.
Driele Alves dos Santos, 31, estava na casa que dividia com o marido e três filhos quando a terra deslizou e uma árvore que ficava acima da casa tombou. O baque fez desabar o muro do quarto onde estavam seus dois filhos caçulas, Cícero, 9, e Ana Cecília, 4, que morreram no desabamento.
“Está sendo muito difícil até hoje, porque fica uma lembrança dos meus filhos que não apaga. Dá uma tristeza muito grande”, afirma Driele, que ainda tem dificuldade para lidar com o luto.
Sem apoio do poder público, ela mora em outra casa no mesmo bairro em que viveu a tragédia. Parentes próximos voltaram para a mesma casa que foi parcialmente soterrada há dois anos.
Morador de uma rua na beira do rio, Luciano de Jesus Silva também voltou para a mesma casa que foi alagada pelas enchentes há dois anos. “Sempre que começa a chover um pouco mais forte, a gente já fica preocupado. A realidade é que a gente está acostumado [com as enchentes], aquela que veio de forma mais alastrosa.”
IMPROVISO
No distrito de Nova Alegria, que teve casas e ruas destroçadas pela força das enxurradas, parte das famílias reformou os imóveis com recursos próprios e voltou a viver em uma área de baixada considerada de risco.
A escola municipal, que foi destruída, está funcionando de forma improvisada em outro prédio com turmas nos três turnos para dar conta da demanda. Uma nova unidade escolar está sendo erguida na parte mais alta do distrito, que tem cerca de 3.500 moradores.
Sem perspectivas, parte dos moradores deixou o distrito e até mesmo a cidade. É o caso da professora Rosilda Oliveira Rios, 51, que, sem apoio para reconstruir a casa que foi destruída, se mudou para Retirolândia, cidade do sertão baiano que fica a 790 km de Itamaraju.
“Fui embora logo depois da enchente. Não tinha como ficar, estava muito abalada e tinha que cuidar da minha filha”, afirma. A família ficou dividida, já que o marido tinha emprego na cidade de Jucuruçu, também atingida pelas enchentes, e permaneceu no sul da Bahia.
A Defesa Civil condenou as casas que ficam em uma área de baixada que foi a mais atingida pelas chuvas. Mas parte dos moradores reformou as casas destruídas e permaneceu no local. Algumas famílias migram para áreas mais altas, enquanto outras ainda moram de favor na casa de parentes.
Até o momento, não há um plano para relocação das famílias ou construção de novas unidades habitacionais em local seguro de Nova Alegria.
O cenário é semelhante em outras cidades baianas atingidas pelas enxurradas. Em geral, foram enviados recursos para ações emergenciais como a reconstrução de estradas e a compra de suprimentos para famílias desabrigadas. Na época, o governo federal liberou R$ 130 milhões para 53 municípios.
Ações de longo prazo ficaram restritas a cidades como Itabuna (431 km de Salvador). Com investimento de R$ 82 milhões, o governo federal vai construir dois loteamentos com 696 unidades habitacionais e dois parques lineares com extensão de 6 km nas margens do rio Cachoeira. Outras 80 famílias terão unidades habitacionais construídas pelo governo estadual.
Com 186 mil habitantes, Itabuna foi castigada pelas cheias que devastaram cerca de 40% da zona urbana da cidade entre 24 e 27 de dezembro de 2021. Ao todo, foram registrados 16 pontos de inundação na cidade, que deixaram 1.777 residências danificadas.
Ao todo, com 7.855 imóveis foram atingidos pela enchente. Famílias que tiveram suas casas destruídas chegaram a ficar abrigadas em baias usadas para alojar animais no Parque de Exposições da cidade.
Depois da fase aguda das chuvas, a prefeitura recolheu 14,5 mil toneladas de lixo, entulho, além de móveis, eletrodomésticos e eletroeletrônicos danificados.
Em nota, a Prefeitura de Itabuna informou que a gestão do prefeito Augusto Castro (PSD) atuou em diversas frentes no apoio emergencial às famílias e que segue executando ações.
PREPARAÇÃO
Ambientalistas cobram atitudes mais efetivas do poder público para enfrentar o cenário de emergência climática, que nos últimos anos fez a Bahia viver chuvas históricas e secas extremas em um curto período de tempo.
“Além da preocupação com a emissão de gases do efeito estufa, há um processo de adaptação [das cidades] que precisa ser feito. Mas gente não vê claramente ações objetivas. As pessoas já deveriam ter saído das áreas mais vulneráveis, e isso não aconteceu. Elas saíram e estão voltando”, afirma Renato Cunha, do Gambá (Grupo Ambientalista da Bahia).
Questionado sobre planos para lidar com o cenário de emergência climática na Bahia, o governo Jerônimo Rodrigues disse que está investindo R$ 220 milhões para construir 2.586 novas unidades habitacionais em 40 municípios baianos atingidos pelos temporais.
Até dezembro deste ano, contudo, apenas 13 casas haviam sido entregues no município de Cocos, no oeste baiano. O governo afirmou que outras 780 unidades habitacionais têm mais de 40% das obras executadas.
Não foram planejados sistemas de alerta que envolvam o uso de sirenes e treinamentos para moradores de áreas de risco. O governo orienta a população a usar o sistema de alerta da Defesa Civil Nacional, que envia mensagens por SMS.
Sobre o mapeamento de áreas de risco, o governo baiano diz que esse trabalho é feito pelo Serviço Geológico do Brasil, órgão federal ligado ao Ministério das Minas e Energia.
JOÃO PEDRO PITOMBO / Folhapress