LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – No final de 2019, Deborah Antunes, então docente do ICA (Instituto de Cultura e Arte) na UFC (Universidade Federal do Ceará), recebeu uma missão: ela tinha que criar uma matéria com o nome “Felicidade”. Para atender ao pedido, a professora iniciou uma pesquisa com disciplinas equivalentes em outras instituições de ensino.
Isso porque a ideia não era totalmente inédita. Universidades públicas brasileiras já dispunham de matérias com o mesmo nome –ou com títulos diferentes, mas com objetivos semelhantes. Em 2018, a UnB (Universidade de Brasília) divulgou a criação de uma disciplina cujo título era “Felicidade”. A UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), no primeiro semestre de 2019, também incorporou uma matéria para tratar do assunto em sua grade de ofertas aos alunos.
Já em 2022, foi a vez da UFC. Antunes, que também era vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da universidade, percebeu “a necessidade de uma abordagem diferenciada da questão, a partir da minha trajetória de estudos e pesquisas no campo da psicologia social e da teoria crítica da sociedade”. A sugestão foi apresentada e aceita pelo instituto.
A proposta do curso foi abordar a felicidade por meio de óticas históricas, culturais e sociais. Também se priorizou relacionar o tema com a experiência dos alunos, a fim de desenvolver modos para superar aspectos envolvidos com a infelicidade.
Para a professora, a proliferação de disciplinas sobre a temática é uma tendência no Brasil, além de aparecer previamente em instituições internacionais de renome, como Harvard e Yale. Nacionalmente, Unicamp (Universidade de Campinas), UFCG (Universidade Federal de Campina Grande) e UFPA (Universidade Federal do Pará) também ofertaram disciplinas com propostas próximas.
“Há uma tendência em toda a sociedade em voltar o olhar para o bem-estar e a felicidade nesse momento […] em que temos um enorme desenvolvimento técnico e científico, porém pouco acompanhado de igual desenvolvimento nas questões humanas”, defende.
Mas diferenças podem existir entre os cursos. Por exemplo, Antunes, que agora está na UFCA (Universidade Federal do Cariri), também no Ceará, e não oferta mais a matéria na UFC, se distanciou de uma corrente que é bastante comum em disciplinas desse tipo: a psicologia positiva.
A professora desejou um olhar crítico sobre essa área e, de acordo com ela, “é bastante contraproducente nos basearmos em fórmulas para atingir a felicidade, pois ela não é simplesmente uma questão individual, mas depende de questões coletivas”.
A ideia de psicologia positiva, no entanto, foi adotada por Valeschka Guerra quando criou uma matéria sobre o assunto na UFES (Universidade Federal do Espírito Santo). Professora de psicologia da instituição, a primeira turma que se debruçou sobre bem-estar e felicidade seguindo o debate proposto por esse movimento da psicologia ocorreu em meados de 2013.
Para Guerra, o receio em relação à psicologia positiva tem origem na ideia de que existe um vínculo entre a área e o trabalho de coaches, o que ela encara como um erro. “Na primeira aula, eu tiro um momento para desmistificar essa associação, por que ela existe, o que a psicologia positiva é e o que ela não é.”
Ela explica que a psicologia positiva trabalha de perto com intervenções relacionadas a motivação e bem-estar. Tais mecanismos, continua, foram adotados por coaches, mesmo que eles não tenham a mesma qualificação e embasamento de um profissional da psicologia.
Guerra explica que, para a psicologia positiva, o bem-estar é entendido por três óticas: o hedônico, que tem associação com a obtenção de prazer e a sensação de bem-estar, o psicológico, relacionado com senso de autorrealização e autoaceitação, e o social, que diz respeito a inserção adequada na comunidade e senso de pertencimento social.
Na disciplina ministrada por ela, todos esses pontos são abordados para complementar a formação do estudante de psicologia. Mas ela ressalta que o objetivo não é pregar uma ideia de felicidade eterna, mas sim mecanismos para lidar com problemas quando eles ocorrem. “No senso comum, a felicidade é uma coisa distante, você tem que batalhar para alcançar e, quando consegue, será feliz para sempre, como se fosse um filme da Disney. Isso não existe.”
O professor Dejalma Cremonese, do Departamento de Ciências Sociais da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), no Rio Grande do Sul, é outro que leciona uma matéria sobre felicidade. Ele explica que a ideia era discutir o assunto com os estudantes, até porque eles, mesmo jovens, apresentam sinais de sofrimento psíquico, como sintomas de ansiedade.
Cunhada com o nome “Ética e Felicidade: Lições da Filosofia Antiga Para uma Vida Boa”, a proposta é fazer um debate do que seria a existência humana e as dimensões de felicidade que a envolve. “A tentativa é desconstruir o conceito tirânico de felicidade que está muito relacionado ao consumo, por exemplo”, resume.
Assim como Antunes, Cremonese não é adepto dos preceitos da psicologia positiva e tem maior apego aos clássicos da filosofia. De Aristóteles, por exemplo, ele adota a ideia de que a felicidade se forma ao decorrer da vida, além de ser pessoal e não pautada em uma fórmula.
Também examina a ideia de ser feliz em relação à ética. “A felicidade é sempre uma relação com a ética, e a ética é sempre uma relação com o outro. A felicidade não é individualizada, ela está vinculada a sociedade que você vive.”
Na disciplina de Cremonese, não existem provas ou exames. Os temas são abordados por meio das leituras de textos filosóficos, de debates e de trabalhos em grupo. O professor acredita que essa metodologia adotada faz com que a matéria seja mais leve. Os feedbacks dos alunos comprovam isso: dos mais de dez anos de oferta, os estudantes têm opiniões positivas sobre a matéria, garante Cremonese.
SAMUEL FERNANDES / Folhapress