‘Fenômeno Milei’ preencheu vazio na Argentina enquanto políticos brigavam entre si

BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Que Javier Milei já é um fenômeno consolidado na Argentina, não há muitas dúvidas. Há meses as pesquisas eleitorais do país mostravam um cenário em que o político ultraliberal brigaria quase de igual para igual com as máquinas do peronismo e da oposição macrista.

O que quase ninguém previu foi que ele superaria ambas as coalizões nas primárias como ocorrido no domingo (13). Analistas ouvidos pela Folha de S.Paulo apontam que um dos principais motivos para isso foi que ele atraiu votos de protesto contra o partidos tradicionais, aparentemente incapazes de solucionar a crise econômica que assola o país.

Mais do que isso, porém, o candidato parece ter ouvido as angústias das ruas e preenchido um vazio discursivo enquanto as forças já instaladas há anos tratavam de discutir entre si.

Milei se posicionou como presidenciável ainda no ano passado, após seu bom desempenho nas eleições legislativas de 2021, quando foi eleito deputado. Enquanto isso, a aliança de oposição de direita Juntos por el Cambio ainda decidia se o ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019) -hoje carta fora do baralho- entraria na disputa.

Foi só em março deste ano que Patricia Bullrich e Horacio Larreta, que concorreram a uma indicação à Presidência pela legenda nestas primárias, aceleraram sua campanha. Do lado do peronismo, a incerteza foi ainda maior, com uma briga entre as alas do presidente Alberto Fernández e de sua poderosa vice, Cristina Kirchner. Só chegaram a um consenso sobre o nome do ministro da Economia Sergio Massa no último segundo, em junho.

Essas disputas internas ocorriam em meio a um cenário em que os preços subiam sem parar, a inflação atingia os 116% anuais, o salário dos argentinos ia se dissolvendo e a pobreza, aumentando. Milei foi o único que deu algum tipo de explicação ou ideias para resolver isso, afirma Nayet Kademián, cientista política da Universidade Nacional de San Martín.

“Houve um descompasso entre a agenda da política e a agenda da cidadania que foi preenchida por Milei”, diz. A pesquisadora acrescenta que o ultradireitista, economista de formação, “já estava nos meios, nos canais de TV, nas redes sociais, apresentando suas ideias e falando contra a classe política” ao mesmo tempo em que os outros ainda estavam disputando quem seria candidato.

Além disso, nenhuma das duas principais forças políticas que governaram o país nos últimos anos conseguiram satisfazer as expectativas econômicas até agora. E nesse ponto, Milei tem a vantagem de representar um grupo novo, com ideias radicais que ninguém nunca tentou implementar antes -o que, por esse mesmo motivo, assusta a outra parte da população.

O funcionário aduaneiro Hector Guantay, 39, que votou na cidade de Merlo, na região metropolitana de Buenos Aires neste domingo, diz que escolheu o ultraliberal por que “esses que estão aí há 40 anos não conseguiram resolver” os problemas do país. “Votei em Milei porque gosto dos projetos dele, das ideias que tem para a juventude”, prosseguiu enquanto esperava do lado de fora de um centro de votação.

Kademián faz um paralelo entre a vitória de Milei e o que ocorreu em 2001 na Argentina, quando a população, enraivecida, foi às ruas e provocou a renúncia do presidente Fernando de la Rúa, que fugiu de helicóptero da Casa Rosada após ter congelado as poupanças no chamado “corralito”. Desta vez, porém, o protesto se deu nas urnas.

A insatisfação já vinha sendo captado pelas pesquisas, que desde o início do ano falavam em uma disputa entre três “terços” –algo inédito na história recente do país, cuja política até então era dominada por peronistas e antiperonistas. Quase nenhuma das sondagens previu, porém, que Milei sairia na frente, com 30%, e as outras forças logo atrás, com 28,3% para a coalizão Juntos por el Cambio e 27,3% para a União pela Pátria.

Para a cientista política Camila Miele, da Universidade de Buenos Aires (UBA), além de ter sido subestimado por analistas, o voto em Milei era difícil de prever porque é um voto “de quem não está tão convencido”. “As pessoas dizem: voto no Milei nas primárias e depois vejo, o que não acontece com o eleitor de Bullrich, mais fiel”, afirma.

Ela diz acreditar que, apesar do desempenho surpreendente, Milei tem um teto mais baixo que o dos outros candidatos em razão de seu radicalismo. “As pessoas votam de forma diferente nas primárias e nas eleições reais”, diz ela. O pleito, afinal, não elege ninguém, e tem como função solucionar eventuais disputas internas de um mesmo partido. “Muita gente pode ter votado nele para dar um sinal à classe política, mas é preciso esperar para ver se isso voltará a se replicar em outubro.”

JÚLIA BARBON / Folhapress

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