CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – O Festival de Cannes não é conhecido exatamente pelos critérios refinados na hora de escolher seus filmes de abertura. A sensação é de que, com tanta energia posta na seleção competitiva, o longa que dá o pontapé no evento acaba estando lá por força da influência de seus realizadores e pelo óbvio protecionismo francês com sua produção.
Nesta terça-feira (14) não foi diferente. Cannes abriu sua 77ª edição com o simpático “The Second Act” -“Le Deuxième Acte”, ou o segundo ato, no original-, de Quentin Dupieux, cineasta francês que já tinha levado “Rubber, O Pneu Assassino” à mostra paralela Semana da Crítica e “Fumar Causa Tosse” às sessões da meia-noite.
Simpático porque não é um filme que dá a sensação de estar abrindo o evento com chave de ouro, de estar pondo nas telas um espetáculo cinematográfico. É o que costuma acontecer quando se escolhe um longa fora da competição para a abertura -o último a tentar a Palma de Ouro foi “Annette”, há três anos, de uma teatralidade arrebatadora.
A escolha desta edição vem no rescaldo do constrangedor “Jeanne du Barry” do ano passado, que por ironia trazia Johnny Depp, pouco após o divórcio hipermidiático de Amber Heard, carregado de acusações de violência doméstica, numa trama que se propunha feminista, na corte de Luís 15. O título ao menos atraiu uma boa quantidade de holofotes para Cannes.
“The Second Act” está distante das intrigas palacianas e dos visuais hiperbólicos do antecessor, mas talvez seja ainda mais arriscado. No filme, Dupieux descortina o cinema e tece uma curta -são apenas 80 minutos- reflexão sobre o estado desta arte tão querida aos franceses.
Assim, emenda discussões que vão da manipulação sentimental das telas à contrastante frieza de algumas estrelas fora de cena. Não fogem do roteiro comentários sobre o movimento MeToo, a cultura do cancelamento, o politicamente correto, os algoritmos das plataformas de streaming, a decadência das salas de cinema e a inteligência artificial cada vez mais presente. Enfim, um pot-pourri de caos cinematográfico.
Por isso mesmo “The Second Act” se aproxima mais do filme de abertura escolhido por Cannes em 2022, quando Michel Hazanavicius -neste ano na competição de longas- levou às telas “Coupez!”, outro comentário bem-humorado, embora menos pretensioso, sobre a sétima arte.
Ambos podem soar um tanto bobinhos para um evento tão sério quanto a mostra de cinema mais importante do mundo, mas não encontram dificuldade para fazer rir, mesmo que no fim deixem um gosto um tanto amargo para o espectador.
Os longas não sabem muito bem como encerrar a trama sem trama que se propuseram a narrar. E por mais que queiram levantar reflexões pertinentes, acabam sendo um tanto esquecíveis -“Coupez!” não chegou ao Brasil até hoje, vale dizer.
Ao menos “The Second Act” garantiu um tapete vermelho abastado para a abertura desta edição. O filme, afinal, é estrelado por quatro das estrelas mais reluzentes da constelação do cinema francês contemporâneo, Vincent Lindon, Louis Garrel, Léa Seydoux e Raphaël Quenard.
O quarteto vive o elenco de um filme ficcional, o primeiro projeto escrito e dirigido por inteligência artificial, nos diz um dos personagens em determinado momento.
Mas, ao mesmo tempo, eles interpretam também um pai e uma filha que vão se encontrar com o pretendente a namorado dela, que por sua vez está levando ao jantar um amigo, para que quer empurrá-la na esperança de se livrar dela.
Essa segunda trama está dentro da primeira, trazendo, assim como “Coupez!”, um filme dentro de um filme. “Nós vamos ser cancelados”, adverte o personagem de Garrel olhando para a câmera, quando o de Quenard sai do roteiro para questionar se a moça que vai conhecer é trans ou uma pessoa com deficiência.
Logo em seguida, depois de uma suposta briga entre os atores do filme, Seydoux vai ao banheiro com Quenard, que tenta beijá-la e ouve dela que aquilo é assédio sexual, que ela poderia enterrar sua carreira em meio ao MeToo.
São vários e interessantes os comentários feitos por “The Second Act”, que fez o público desta terça rir sem esforço. O filme só parece descolado do que esperamos para a primeira olhadela de um festival tão prestigiado e glamoroso, mas isso parece ser algo com que os “festivaliers” terão que se habituar.
LEONARDO SANCHEZ / Folhapress