SÃO PAULO, SP (UOL/FOLHAPRESS) – A idosa Ruth da Silva Marques, 64, nasceu dentro de uma lavanderia do antigo hospital-colônia Tavares Macedo, em Itaboraí, no Rio de Janeiro. Um dia após o parto, feito de maneira sigilosa pela própria mãe, ela foi levada por funcionários do hospital para um preventório, uma espécie de orfanato para crianças com pais vivos. Essa era a política brasileira para filhos de portadores de hanseníase. Seis décadas depois, Ruth ainda aguarda a promessa de uma política de reparação para os filhos retirados do convívio familiar.
UM INÍCIO DE VIDA LONGE DA FAMÍLIA
Entre 1949 e 1986, uma lei federal permitia que os filhos fossem separados dos pacientes que viviam nas colônias. Assim como Ruth, outras 40 mil crianças foram segregadas do convívio com os pais. A estimativa é do Morhan (Movimento de Reintegração dos Acometidos pela Hanseníase). A instituição calcula que atualmente cerca de 14 mil pessoas ainda estejam vivas. No Brasil, existiam cerca de 40 leprosários onde viviam isolados os pacientes da doença.
Há oito meses, esses filhos aguardam a promessa do início do pagamento de uma pensão vitalícia. Em novembro de 2023, o presidente Lula (PT) sancionou um projeto de lei que garante uma indenização a essas famílias. No dia da cerimônia, o presidente reconheceu que o Estado brasileiro falhou. “Errou ao manter segregados pais e filhos, mesmo depois da cura para hanseníase ser descoberta na década de 1940, mesmo depois da recomendação mundial”, afirmou Lula no dia 24 de novembro.
Ruth conta que, com a aprovação da lei, tem esperança de receber a pensão. Mas lamenta a demora para a regulamentação do decreto presidencial. Na prática, nenhum filho foi beneficiado. Segundo o Morhan, desde novembro, cerca de 100 pessoas que estariam na lista para receber o benefício já morreram. Vale ressaltar que a pensão não será transmitida para herdeiros ou dependentes.
O pai de Ruth era portador de hanseníase. A mãe não tinha a doença, mas morou boa parte da vida com o marido dentro do hospital-colônia, onde deu à luz a 14 filhos. Todos foram retirados do convívio familiar. A maioria foi levada para o Educandário Vista Alegre, no bairro Alcântara, em São Gonçalo (RJ). “Mamãe tentava esconder os filhos na lavanderia, onde ela trabalhava na colônia, mas eles sempre descobriam. Perguntavam apenas qual nome ela queria no registro e levavam os bebês para os orfanatos”, lembra Ruth.
Falar sobre o tempo em que viveu no orfanato ainda é doloroso para ela. Ruth viveu longe dos pais até os oito anos. A rotina no educandário envolvia abuso sexual, fome, maus-tratos e isolamento. “A gente não podia se misturar com a sociedade. Toda noite antes de dormir a gente apanhava porque conversava, mas não entendíamos os motivos. Eu entrava escondida na despensa da cozinha para roubar pão, era muita fome”.
Nos momentos de maior desespero, Ruth diz que chamava pela mãe. “A noite era o pior momento. Eu inventei uma música lá dentro, que dizia: Mamãe, venha cá, e eu balançava a minha cabeça pra lá e pra cá e olhava pela janela e chorava”.
Os pais compraram um terreno em Itaboraí, ao lado do hospital, e aos oito anos Ruth saiu do orfanato. “Pra nós era muito diferente, mas a gente estava conhecendo uma parte do mundo lá fora”. Os desafios continuaram fora do isolamento. O pai continuava internado e às vezes conseguia autorização para visitar os filhos na própria casa. A mãe dela precisava se dividir entre a criação dos filhos, o cuidado com o marido e o trabalho como enfermeira. Na escola, Ruth e os irmãos eram vítimas de preconceito por serem filhos de um pai que era portador da hanseníase.
“Foi bastante triste pra gente porque a gente era xingado, era muita implicância. Na igreja, a gente tinha que sentar longe das pessoas, em um local reservado. Eu tinha oito anos, via minha mãe chorando, não entendia muito bem no início. Quando lembro, respiro e penso como era tudo tão triste”< disse Ruth Marques.
MEMÓRIA E ISOLAMENTO
Ruth nunca conseguiu se aposentar. Trabalhou na informalidade, sem carteira assinada, como babá, cuidadora de idosos e faxineira. Começou cuidando de crianças na igreja. “Nas casas em que eu trabalhei, saía todo mundo até eu terminasse o serviço. De vez em quando, eles ligavam e perguntavam: ‘você já está terminando’, ‘quando terminar avisa para a gente voltar’. Eu estava ali porque estava precisando para ajudar o meu marido e sustentar os meus filhos, mas era como se a minha presença fizesse mal”.
O melhor emprego que teve na vida foi quando trabalhou em uma casa em que havia um idoso portador de hanseníase. “O meu pai tinha partido, eu sentia que ele era meu pai. Foi um lugar de Deus, eu me sentia parte da família, comia com eles na mesa. Não tinha a separação de colher, de prato. Foi um dos dias mais felizes da minha vida quando entrei nesse trabalho”.
Ela parou de trabalhar em 2012, devido a uma úlcera na perna que lhe causa fortes dores. Hoje ela vive apenas com a aposentadoria do marido.
Ruth e os quatro irmãos que ainda estão vivos aguardam o pagamento da pensão. Ela lamenta que um deles morreu, em dezembro de 2023, com a esperança de receber o benefício. “O nome dele era João Batista, tinha 72 anos. Ele falava com alegria, assim, ‘minha irmã, eu estou precisando muito dessa ajuda’. Ele ficava muito alterado, nervoso quando falava do assunto. Infartou”.
INDENIZAÇÃO NÃO REPARA VIVER LONGE DA FAMÍLIA
O aposentado Nildo Porto, 63, foi separado da família quando tinha oito anos. Ele morava com quatro irmãos, o pai e a mãe no bairro de Citrolândia, no município de Betim, em Minas Gerais. O seu pai tinha a doença, mas desde o nascimento de Nildo, alternava entre internações compulsórias e fugas do hospital-colônia. No momento em que entrava, não podia sair. “Ele não aguentava ficar preso”, lembra o filho.
O caminho de Nildo foi diferente da maioria dos filhos separados pela hanseníase. Ele nasceu e foi criado dentro da mesma casa. A condição financeira da família não era boa. As lembranças são poucas porque Nildo era muito pequeno. Mas aos oito anos, a condição de saúde do pai apresentou uma piora. Ele foi internado novamente e a mãe de Nildo não tinha condições de criar sozinha o filho. “Lembro que ela não sabia ler, escrever, trabalhava na roça”.
Nildo, uma criança sadia, mas filho de pai portador de hanseníase, ficou dos oito anos até os 17 no Educandário Eunice Weaver, em Belo Horizonte. O orfanato, para ele, era uma prisão. “Você vai pra lá e fica preso, sem ter cometido crime”. Retirado do convívio familiar, Nildo lembra que recebia visitas dos pais, mas não podia abraçá-los. “É pior que se eu só tivesse sido separado desde pequenininho”. “A gente se via por uma janelinha pequena, não podia ficar junto”, acrescentou.
Ele é um dos filhos que esteve em Brasília, em novembro de 2023. Nildo foi com uma caravana acompanhar a sanção da lei que vai conceder o pagamento de pensão a filhos de portadores de hanseníase separados dos pais entre os anos 1930 e 1980.
“Essa indenização não repara nada. Claro que vamos aproveitar um pouco desse dinheiro porque a maioria passa por muita dificuldade. Mas ele não vai reparar nada. Mas dinheiro nenhum repara crescer longe do convívio de pai e mãe”, disse Nildo Porto.
Nildo é pai de dois filhos, tem três netos e é divorciado. Hoje mora com seus dois cachorros. Trabalhou como auxiliar de pedreiro, churrasqueiro, comerciante e conseguiu se aposentar. “Quando eu saí do orfanato, eu fui trabalhar em um local. Quando eles descobriram que eu era filho de doente, ninguém chegava perto de mim”.
Relembrar as boas histórias com outros companheiros de orfanato se tornou motivo para encontro mensal. Ele conta que acabou se tornando irmão dos colegas. Eles se reúnem sempre na casa de Nildo, pelo menos uma vez por mês. Comem, bebem e conversam sobre tudo que passaram. “Eu tenho uma varandinha que dá pra encontrar a turma. Aí o cara vai lembrando, vai contando. É uma satisfação a gente se ver, bater papo, lembrar as coisas boas, as ruins também. Mas no encontro eu falo com eles para a gente lembrar mais as coisas boas do que as ruins porque se não fica triste”.
DEMORA NA REGULAMENTAÇÃO DA LEI E DO SOFRIMENTO
Em 2007, Lula, em seu segundo mandato, editou uma medida provisória garantindo pensão vitalícia a pessoas portadoras de hanseníase que tenham morado em hospitais-colônias. Agora, a nova lei estende o benefício aos familiares.
Thiago Flores, diretor jurídico do Morhan, explica que a demora traz sofrimento para as pessoas que já foram vítimas de um crime de Estado. Para ele, o governo revitimiza os filhos separados.
Enquanto a lei não é regulamentada, os beneficiários não conseguem fazer o requerimento para acessar os seus direitos. “Isso está trazendo muito sofrimento para essas pessoas, e faz com que cada vez menos elas tenham esperança de receber as suas indenizações. “Entre a assinatura da lei e os dias de hoje, mais de 100 pessoas já faleceram sem receber as indenizações. Esse período muito elevado dessa busca faz com que esses direitos sejam violados mais uma vez. Foram violados pela política de isolamento compulsório da hanseníase e estão sendo violados novamente”, criticou.
O Morhan preparou um abaixo-assinado para cobrar o governo federal. “Isso é inaceitável, incabível e não tem justificativa. Estamos fazendo um abaixo-assinado cobrando o governo e junto a isso, estamos fazendo uma mobilização no Brasil todo para que as pessoas possam ter acesso aos seus direitos – ter um pouco da sua cidadania resgatada e ter uma vida um pouco melhor”.
O QUE DIZ O GOVERNO FEDERAL
As pessoas só poderão solicitar a pensão quando a nova redação da lei for regulamentada.
Sobre valores da pensão, a lei prevê que o benefício terá um valor “não inferior ao salário-mínimo nacional vigente”. O valor da pensão será definido pelo decreto.
O governo federal, por meio do MDHC (Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania) diz que a regulamentação segue o trâmite para normas editadas diretamente por autoridades públicas. “A minuta do decreto que regulamenta a nova redação da lei 11.520 de 2007 já foi redigida e está seguindo o trâmite usual”.
A pasta explicou que a matéria é complexa. “Tendo em vista que a nova redação prevê não uma, mas quatro hipóteses de elegibilidade para o recebimento da pensão especial, são elas pessoas submetidas à internação compulsória em colônias; pessoas isoladas em seringais; pessoas isoladas em domicílios; e pessoas filhas separadas dos genitores no contexto da internação compulsória. Desta forma, a regulamentação terá que disciplinar cada uma das hipóteses acima”, diz trecho de nota enviada ao UOL.
O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania está tomando as medidas necessárias para que, uma vez regulamentada a lei, o processo de análise seja o mais rápido possível.
A respeito do número de pessoas beneficiadas, o MDHC esclareceu que após realizar um estudo detalhado dos registros de filhos separados e de outros documentos, estima entre 8.900 e 13.100 o número de pessoas aptas a receber a pensão vitalícia.
ENTENDA O QUE É A HANSENÍASE
A hanseníase é uma das doenças mais antigas do mundo e atinge cerca de 200 mil pessoas por ano. O Brasil é o segundo país com mais casos. No início da década de 1990, a Assembleia Mundial da Saúde estabeleceu como meta a erradicação da doença até o ano 2000.
A primeira evidência médica da doença infecciosa surgiu em 1873, com a descoberta de seu patógeno causador, a bactéria Mycobacterium leprae, pelo pesquisador norueguês Gerhard Armauer Hansen. Ela é transmitida por meio de gotículas de saliva e do contato próximo e frequente com um indivíduo infectado.
A enfermidade geralmente afeta pessoas com sistema imunológico enfraquecido. Essa é considerada uma das razões pelas quais a bactéria é encontrada principalmente em grupos sociais mais pobres na Índia, Brasil e Indonésia.
A hanseníase pode ser tratada e curada. As pessoas podem se recuperar e continuar com suas vidas normalmente. O tratamento envolve uma combinação de medicamentos.
EDUARDA ESTEVES / Folhapress