Filme mostra Fernanda Young como o avesso da cultura do cancelamento

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quem tem medo do cancelamento? Fernanda Young não tinha. Pelo contrário. Gostava de provocar e tocar em assuntos espinhosos. Se suas opiniões incomodassem, dava de ombros. Aceitava não ser unanimidade. “Prefiro ser vaiada a receber aplausos chochos”, diz a escritora em certa cena do documentário “Fernanda Young: Foge-me ao Controle”, em cartaz nos cinemas.

Dirigido por Susanna Lira, a obra faz um retrato pouco convencional da trajetória da artista, morta em 2019, aos 49 anos, após uma crise de asma. No lugar de depoimentos de amigos e parentes, é a escritora quem narra a própria vida. “É meio estranho perguntar para alguém quem foi Fernanda Young se ela mesma dizia isso, com todas as suas contradições e complexidades”, afirma Lira, que recorreu a entrevistas que a artista deu ao longo da carreira para construir o documentário.

Esse material mostra uma artista sem medo de expor traumas, desejos e frustrações. “Na literatura, eu sempre fui extremamente desrespeitada”, diz ela, em uma das cenas. “Pode parecer amargura, mas posso dizer que, um: eu sou mulher; dois: eu não pareço ser uma intelectual; três: eu não reverencio os coronéis da cultura.”

Em 1996, ela entrou para o mundo literário com a publicação do romance “Vergonha dos Pés”. Depois, lançou ao menos outros 13 livros. Sua última publicação “Pós-F: Para Além do Masculino e Feminino” foi seu primeiro trabalho de não ficção, em que reflete sobre questões de gênero.

O estilo literário de Young não obedecia a uma linearidade. Essa característica está presente também no documentário, que conta a vida da escritora sem seguir uma ordem cronológica. “A gente precisava fazer um filme que se parecesse com ela, porque uma narrativa convencional não combinava com a Fernanda. É um documentário fiel à energia dela”, diz Lira, que já dirigiu documentários como “Positivas” e “Torre das Donzelas”.

Apesar da produção profícua na literatura, a escritora era mais conhecida por seus trabalhos na televisão. O primeiro deles foi a série “A Comédia da Vida Privada”, uma adaptação de textos de Luis Fernando Verissimo exibida na Globo, que ela escreveu junto com o marido, o escritor e roteirista Alexandre Machado.

O maior sucesso da dupla foi a série “Os Normais”, exibida entre 2001 e 2003. Protagonizada por Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães, a produção agradou ao acompanhar as desventuras do casal Rui e Vani.

Para jogar luz sobre a produção literária da escritora, Lira convidou a atriz Maria Ribeiro para ler trechos de obras como “Tudo que Você Não Soube” e “A Mão Esquerda de Vênus”. Em um dos trechos, a atriz dá voz às inquietações de Young sobre o lugar da mulher na sociedade. “Tente imaginar, pai, o susto que é ser uma garota. Na rua, somos cantadas. Em casa, somos reprimidas. Querem-nos bela, mas nos agridem se tentamos. Somos violentadas sob a capa do afeto.”

A própria escritora foi abusada sexualmente por um ex-namorado. “Depois que entrei em contato com a Fernanda, nunca mais olhei no espelho da mesma forma”, diz Lira. “Para além da minha imagem, passei a encarar o que é ser mulher.”

Young também tinha uma visão pouco idealizada sobre a maternidade. Mãe de quatro filhos, falava abertamente sobre a depressão pós-parto que teve em sua primeira gravidez, em 2000. “Embora fosse uma mãe muito amorosa, era honesta sobre a maternidade”, diz a cineasta. “A gente tem uma cultura religiosa que nos aprisiona no papel de Virgem Maria.”

Young não queria ser imaculada. Inclusive, estava longe disso. Conhecida pela postura confrontadora, era cancelada antes mesmo de esse fenômeno ganhar um nome nas redes sociais. Foi isso que aconteceu em 2003, quando era uma das apresentações do programa Saia Justa.

“Tanta criança morrendo de bala perdida no Rio, mas ninguém faz nada. Estou cagando se estão saqueando a Mesopotâmia”, disse na atração, referindo-se à invasão do Iraque pelos Estados Unidos.

Críticas a posicionamentos como esses não faziam a escritora mudar de postura. Ela aceitava não ser querida, como diz em uma cena do documentário. “Vivemos em uma sociedade onde as pessoas querem agradar. Todos querem ser queridos. Isso faz muito mal”, afirma Lira. “Acho que a gente precisa encarar a nossa vulnerabilidade, nossa complexidade, e usar a honestidade da Fernanda como um farol para nos guiar.”

Fernanda Young – Foge-me ao Controle

Quando Em cartaz

Onde Nos cinemas

Classificação 16 anos

Produção Brasil, 2024

Direção Susanna Lira

MATHEUS ROCHA / Folhapress

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