Filme ‘Terra que Marca’ fala da lavoura lusa, mas mira festivais franceses

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando pensamos em cinema português, vêm-nos à mente o binômio imagem e palavra. Poucos cinemas são tão concentrados na composição de um quadro pictórico como o cinema português, e poucos dão tanto valor à palavra escrita ou falada.

Talvez o certo seja falar em cinemas portugueses, já que o país pode ser pequeno, mas seu cinema é incrivelmente plural, cabendo tanto essa escola, a da imagem e palavra, quando outra, que se baseia num diálogo maior com o grande público, além de um monte de possibilidades que precisam lutar para não pertencerem a um grupo ou a outro.

Havia até uma expressão preconceituosa que reza pela divisão de seu cinema entre os filmes para Bragança e os filmes para Paris, estes últimos sendo os responsáveis pelo reconhecimento da força de sua cinematografia nos festivais internacionais.

“Terra que Marca” pertence ao segundo grupo, embora não se sinta tão confortável ali. Acompanhamos trabalhadores da terra, homens e mulheres que plantam, cuidam da lavoura, vivem em contato frequente com a natureza. Não há praticamente uma história. É um ensaio documental sobre o trabalho de lavradores.

Ou há uma história anterior ao filme, explicitada nos letreiros iniciais que contam de dois malfeitores que cumpriam a pena de cuidar da terra. Cada um com uma porção que passaria para seus herdeiros e o que vemos o tempo todo é esse “cuidar da terra”.

Raul Domingues, o diretor, ou melhor, o responsável pela imagem e pelo som, como aparece nos créditos, parece ter consciência da força do cinema de seu país e procura fazer um filme em que a imagem seja poderosa. Mas destaca sobretudo um terceiro fator, normalmente ignorado nas resenhas e mesmo nas exegeses mais rigorosas: o exímio trabalho com o som.

A opção aqui é curiosa. Não ouvimos nada do que falam, apesar de percebermos os lábios se mexendo. Ouvimos, por outro lado, todos os barulhos do trabalho com a terra, o bater de uma enxada, a ação de um regador, o motor de um trator, ruídos de passos e de carros, até mesmo um leve cantarolar aqui e ali. A palavra é que está ausente.

Curiosa também porque não parece ser um som pós-sincronizado. Os ruídos todos parecem ser captados diretamente. Mas as pessoas falam e não as ouvimos. O realismo é capturado pelo pescoço e retorcido até ficar irreconhecível.

No entanto, por se tratar de um filme da terra, na terra e sobre a terra, haverá sempre quem o entenda como neorrealista, fatias da vida arregimentadas em um longa de curta duração, de pouco mais de uma hora.

A opção por uma câmera mais solta, oposta à da escola portuguesa de Manoel de Oliveira e João César Monteiro, ou seja, a dos “filmes para Paris”, tira um pouco a beleza das imagens, ao mesmo tempo em que fortalece o aspecto documental.

Em 2010, Joana Torgal e Rodolfo Pimenta fizeram um filme semelhante, mas ainda inigualável nesse tipo de registro: “Wolfram – A Saliva do Lobo”. Neste filme sublime e pouco conhecido, vemos a extração de minério em todas as suas etapas, num movimento que vai do natural ao abstrato, com um trabalho de som semelhante ao de “Terra que Marca”.

Mas se em “Wolfram” o tratamento da imagem é rigoroso ao ponto de não soarem exagerados superlativos como “magistral” ou “belíssimo”, no filme de Raul Domingues a pegada parece ser outra. A proximidade com o trabalho na terra não leva à abstração, mas ao intimismo.

Singelo até mesmo no título, “Terra que Marca” disfarça uma suposta pretensão autoral com um aspecto amadorístico até interessante, mas limitador, justamente por ter enfraquecido a composição de quadro.

No final, um outro aspecto se apresenta e o filme se revela, meio disfarçadamente, e ainda com uma câmera incerta, uma pesquisa visual sobre a incidência da luz na terra e nas folhagens.

Mais do que o acerto no destaque às paisagens sonoras, termina por ser a imagem, por meio do estudo da luz, que se apresenta novamente como o maior trunfo em um filme português.

SÉRGIO ALPENDRE / Folhapress

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