CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – O Brasil chegou ao Festival de Cannes cheio de bandeiras nas mãos. Não literalmente, como ocorreu em edições passadas, com manifestações no tapete vermelho, mas por meio de filmes carregados de política.
Além de “Motel Destino”, que Karim Aïnouz leva à competição de longas, “A Queda do Céu”, “Baby” e os curtas “Amarela” e a “Menina e o Pote” contribuem para a sensação de que o cinema do país tem muito a dizer. Mesmo “Bye Bye Brasil”, exibido na seção de clássicos, já questionava nossa ideia de país em 1979.
“Nos esquivarmos de questões políticas faz com que a gente não se olhe no espelho, e é importante a gente fazer isso. O Brasil foi confrontado com uma situação trágica após a eleição da extrema direita, então agora é hora de tirarmos alguns temas debaixo do tapete”, diz Aïnouz.
Com seu “Motel Destino”, ele discute em especial o feminicídio e a violência contra a mulher, mas também abre espaço para falar de racismo, do crime organizado e de uma juventude brasileira sem perspectiva, tingindo as cenas de cores fortes e, assim, dando um senso de urgência às discussões.
“É muito importante também porque esses filmes não vêm só com a questão política, porque cinema também é objeto de entretenimento, de imersão. Então ‘Motel Destino’ não é simplesmente um drama social, ele tem corpo próprio.”
A falta de perspectiva é também o que põe “Baby” de pé. O filme troca o Ceará de Aïnouz pela São Paulo natal do diretor Marcelo Caetano, e conquistou o prêmio de ator revelação da Semana da Crítica, pelo trabalho de Ricardo Teodoro.
Ele vive um garoto de programa que também faz dinheiro vendendo drogas em boates ou na Praça da República. Um dia, decide acolher o Baby do título em sua casa. Aos 18 anos, o personagem acabou de sair da Fundação Casa e, renegado pelos pais por causa da homossexualidade e sem um futuro claro pela frente, começa a se prostituir.
“Tem um grito de guerra aí. Era algo que estava calado dentro da gente. Eu sempre falava muito com os atores, que a gente não está fazendo um filme sobre vítimas. Eles são vítimas, mas também são guerreiros. O ‘Queda do Céu’ é brilhante nesse sentido, é um grito de guerra literal contra o homem branco”, diz Caetano.
Com a vitrine do Festival de Cannes, “Baby” já garantiu distribuição em diversos territórios internacionais, incluindo mercados importantes, como Estados Unidos, Canadá e França. Caetano conta que foi difícil viabilizar o filme, num momento em que o governo Bolsonaro defendia abertamente um discurso contra a classe artística e, agravando seu caso, contra a população LGBTQIA+.
“Desde 2019 não víamos um ano tão bom para o Brasil em Cannes, com tanta efervescência. É uma mensagem de que é impossível matar o cinema, matar os artistas. A gente vai continuar”, diz o cineasta, diretor também de “Corpo Elétrico” e que trabalhou como diretor de elenco de “Bacurau”, exibido no festival naquele ano.
Mas “Baby” não se limita ao romance queer que está no centro da trama. Fala ainda do abandono do centro de São Paulo, do tráfico de drogas, da corrupção da polícia, da desigualdade social e da importância de reivindicarmos uma identidade própria, algo que é mote de “Amarela”.
Dirigido por André Hayato Saito, o título concorre à Palma de Ouro de curta-metragem, e gira em torno de uma adolescente brasileira, descendente de asiáticos, no dia da final da Copa do Mundo de 1998. Em meio à onda verde e amarela que contagia o país, ela reflete sobre ser japonesa demais para ser brasileira e vice-versa.
“A história é ambientada nos anos 1990, mas esse tema é muito atual. Eu sempre me senti estrangeiro no meu próprio país, o que me pôs numa fronteira”, diz Saito, que narra a sua própria história por meio da personagem de Erika Oguihara.
“O filme fala muito sobre pertencimento e identidade, e muita gente pode se relacionar com isso. Uma menina parda que o viu veio me falar que ficou muito emocionada. Com o mundo do jeito que está hoje, essa é uma discussão muito atual”, diz ainda sobre a oposição entre a globalização e o crescimento de um patriotismo torpe em diversos países.
O cineasta conta que gravar foi como um processo terapêutico, que deve se estender em breve, já que o curta é apenas uma amostra de um longa, nos planos já há algum tempo, e que deve começar a ser rodado no ano que vem.
A identidade indígena é outra amplamente explorada pelos brasileiros neste Festival de Cannes. Além de “A Queda do Céu”, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, que levou a cosmologia yanomami à Quinzena dos Realizadores, o curta “A Menina e o Pote”, de Valentina Homem, na Semana da Crítica, também se alimenta da cultura yanomami e baniwa.
“É bonito que esses filmes estejam aqui porque não adianta nada olhar para o fim do mundo e achar que não tem nada a ser feito. Enquanto cineastas, a gente tem que construir histórias”, diz Homem, para quem essa leva é fruto do “desespero” da classe artística durante o governo Bolsonaro, período no qual esses projetos foram gestados.
“É um grande acontecimento na nossa vida ter um filme aqui, e ‘A Menina e o Pote’ traz uma mensagem da floresta amazônica para a Europa, que transmite a importância da nossa relação com a natureza.”
LEONARDO SANCHEZ / Folhapress