BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O defensor público-geral federal, Leonardo Magalhães, diz que o fim das saidinhas pode dividir os presos entre os que já tinham decisão favorável para deixar o sistema penitenciário em datas comemorativas e os que terão que se submeter às novas regras, sem o direito de visitar a família.
Antes mesmo da derrubada do veto do presidente Lula (PT), a lei reduzia drasticamente o número de possíveis beneficiados e dava início a uma “imensa discussão jurídica” ao deixar de propor qualquer norma de transição, afirma o chefe da Defensoria Pública da União.
“Você retira totalmente o direito a saídas temporárias no Brasil. A gente tem mulheres que não praticaram crimes com violência ou grave ameaça, não praticaram crimes hediondos, e que vão perder o direito de ver seus filhos. Presos que vão perder o direito de ver os pais”, diz em entrevista à Folha de S.Paulo.
No cargo desde janeiro depois que o Senado rejeitou o nome do indicado anterior, Magalhães também afirma que avalia acabar temporariamente com o teto de renda de R$ 2 mil para acessar os serviços da DPU no Rio Grande do Sul.
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Pergunta – De que forma o fim das saidinhas o preocupa?
Leonardo Magalhães – A saída temporária é um direito que vem para garantir a reinserção social do preso. É uma forma de, pouco a pouco, a pessoa voltar ao convívio da família, dos amigos. Uma política de descompressão do sistema penal. Com o veto derrubado, você retira totalmente o direito a saídas temporárias no Brasil. É uma situação complicada.
A gente tem mulheres que não praticaram crimes com violência ou grave ameaça, não praticaram crimes hediondos, e que vão perder o direito de ver seus filhos. Presos que vão perder o direito de ver os pais.
A pena não pode passar da pessoa do condenado. Nós estamos também retirando dos filhos, dos pais, a possibilidade de ter o convívio, ainda que por um período pequeno, com a pessoa privada de liberdade. Pouco mais de 5% dos beneficiados não retornam. Que política pública tem 95% de êxito?
P. – O sr. teme rebeliões?
L. M. – Quem atua no sistema penitenciário sabe muito bem que essas restrições têm um condão de gerar instabilidades, insatisfações, e que essas insatisfações eventualmente podem escalar. De maneira que pode gerar uma situação de rebelião. Um dos requisitos para o preso ter acesso à saída temporária é ter bom comportamento. Se ele não tem incentivo do Estado para ter bom comportamento…
P. – A lei pode criar duas categorias de detentos?
L. M. – Eu solicitei à Câmara de Coordenação e Revisão Criminal, que orienta a atuação dos defensores, uma nota técnica sobre as consequências.
Qual é a questão? Uma coisa são aquelas pessoas que já têm decisão judicial favorável à saída temporária. Aquelas que já tiverem decisão judicial vão gozar da saída temporária nos termos definidos na decisão judicial. Aquelas que não têm podem ter que cumprir a lei vigente. Mas esses pedidos têm que ser renovados porque dependem do bom comportamento.
Isso vai impactar também os presos do 8 de janeiro; essa é uma pergunta que me fazem. Não está assegurada para nenhum preso a aplicação da lei anterior. É uma norma de direito processual, que se aplica a partir da data de vigência.
Nós, da Defensoria Pública, muito provavelmente manteremos a posição de que nenhuma norma pode retroagir para prejudicar. Em tese, [a lei] deveria ser aplicada só para os crimes posteriores. Isso vai ser objeto de imensa discussão jurídica. A lei não traz norma de transição.
P. – Como está a atuação da DPU no 8 de janeiro?
L. M. – No mês passado, reuni-me com o procurador-geral da República [Paulo Gonet] e solicitamos a celebração de acordos de não persecução penal para casos de menor potencial ofensivo, pessoas que não participaram da depredação.
Uma vez homologado o acordo, a pessoa deve cumprir serviços comunitários e indenizar o Estado. Ao assinar, a pessoa reconhece a prática delitiva. Um problema que surgiu é que muitas dessas pessoas são hipossuficientes e não têm condições de pagar a multa mínima de um salário mínimo. A solução apresentada foi pedir o parcelamento.
P. – Estamos falando de quantas pessoas?
L. M. – Houve 1.254 processos na DPU, dos quais 979 foram arquivados. Entre os arquivados, alguns foram absolvidos, outros, condenados. Em outros, um advogado particular assumiu a defesa. Alguns processos também foram arquivados devido aos acordos de não persecução penal. Até o momento, foram firmados 110. Nosso trabalho hoje é identificar essas situações de menor potencial, menor dano.
P. – Só neste ano o Senado aprovou castração química, PEC anti-drogas, fim das saidinhas. O que o sr. conclui desse quadro?
L. M. – Acredito que precisamos compreender que o Brasil é uma República Federativa composta de três Poderes. O Legislativo tem a obrigação constitucional de legislar e representar os anseios da população.
Se o Congresso entende que deve avançar em certos temas que, eventualmente, possam não parecer tão adequados do ponto de vista da dignidade humana, isso será, no futuro, objeto de discussão judicial.
Isso não impede que órgãos de Estado, como a Defensoria Pública, defendam garantias. Em situações que entendemos poder ser objeto de judicialização, a Defensoria agirá no caso concreto da pessoa específica, buscando promover todos os direitos possíveis.
P. – Como está a atuação no Rio Grande do Sul?
L. M. – A sede DPU em Porto Alegre, Canoas e Santa Maria foi alagada. No dia 4 de abril eu inaugurei a nova sede em Porto Alegre. Nós perdemos tudo. Estive com a Caixa Econômica, nós vamos estar juntos na identificação de beneficiários. As pessoas perderam tudo, inclusive documentos.
Como a gente vai identificar aquela pessoa como beneficiária do Bolsa Família? Fizemos uma parceria para que a identificação biométrica seja utilizada.
Para as pessoas que possuem financiamento imobiliário, solicitamos à Caixa, que nos atendeu prontamente, que elas possam solicitar ao seguro a quitação do financiamento. Elas vão ter outra dívida, a da reconstrução. Estamos atuando também no remanejamento da população penitenciária. O primeiro andar do Complexo Prisional de Charqueadas foi alagado, os presos foram transferidos para o segundo.
Em breve, pretendo publicar uma norma específica para o Rio Grande do Sul [acabando com o teto exigido para ser atendido, de renda familiar de até R$ 2.000]. Da noite para o dia, pessoas que antes não eram assistidas pela Defensoria, que não eram parte do público-alvo, passaram a ser. Porque perderam tudo. Veja Eldorado do Sul, 98% do município [atingido]. Já estive com a AGU, a ideia também é tentar fazer conciliações prévias para evitar ao máximo demandas judiciais.
RAIO-X
Leonardo Magalhães, 38
É defensor público-geral federal, cargo mais alto da Defensoria Pública da União. Foi indicado pelo presidente Lula (PT) depois que o Senado rejeitou o nome do escolhido anterior, Igor Roque. Na DPU desde 2008, atuou na Corte Interamericana de Direitos Humanos e foi vice-presidente da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Federais.
THAÍSA OLIVEIRA E RAQUEL LOPES / Folhapress