‘Folhas de Outono’ é romântico, politizado e leve na medida certa

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Depois de um dia de trabalho árduo (e mal remunerado), dois amigos vão tomar uma cerveja em um bar. Um deles reclama que anda deprimido porque tem bebido demais. “Mas por que você tem bebido tanto?”, o outro pergunta. E o primeiro responde: “Porque ando deprimido”.

Aki Kaurismaki está quase todo nessa cena de “Folhas de Outono”, exibido no Festival de Cannes, que traz em si tamanha concentração de elementos típicos da obra do diretor que é quase uma súmula de todo o seu cinema. O cenário e as performances estilizadas, a melancolia finlandesa, a presença do álcool, o senso de autoironia e o uso do humor como escape para os problemas da vida -a mistura de observação social com ternura pelos personagens que tem feito de Kaurismaki o cineasta mais importante da Finlândia há décadas.

O filme é uma história de amor bastante simples. A mocinha é Ansa, uma mulher bonita, mas meio desprovida de autoconfiança, que leva uma vida tediosa e sem grandes perspectivas, trabalhando em um supermercado de Helsinki. O rapaz é Holappa, igualmente desanimado sobre tudo, a não ser pelo prazer fugaz e traiçoeiro que o cigarro e as bebidas alcoólicas lhe trazem. A sua insatisfação diante da vida se torna tão intensa que ele começa a se embriagar às escondidas no trabalho -e, obviamente, um dia seu delito é descoberto, e ele é demitido.

Quando Ansa e Holappa se conhecem, um se identifica com a solidão e a apatia do outro. Mas um pequeno acidente faz com que percam contato e não consigam marcar novo encontro, e aí o filme se desenrola a partir desse pequeno quiprocó.

O título internacional do filme, “Fallen Leaves”, faz referência a uma bela canção francesa dos anos 1940, “Les Feuilles Mortes” -sucesso na voz de Yves Montand e que, no Brasil, é lembrada pela semelhança melódica com a não menos bela “Os Seus Botões”, de Roberto Carlos.

É a canção que envelopa essa singela história de amor romântico, que o cinema há um bom tempo andava nos devendo -os “filmes de amor” à moda antiga não parecem ter muito espaço no mundo atual, em que o público se mostra mais interessado ou por comédias românticas pasteurizadas de Hollywood (e, ainda assim, cada vez menos) ou por melodramas pesados, que resvalam quase invariavelmente para uma pretensão identitária, denunciado o comportamento tóxico de um dos cônjuges. É como se o mundo de hoje não abarcasse mais falar de amor pelo viés da leveza.

Mas é possível existir um filme leve e, ao mesmo tempo, reflexivo sobre a época e o local em que foi feito -em sido essa a especialidade de Kaurismaki desde que surgiu, nos anos 1980. E o romance de “Folhas de Outono” não é em nada desconecto de uma aguda percepção social -o alcoolismo de Holappa e a solidão de Ansa, por exemplo, estão completamente inseridos no contexto de uma Europa ultraliberal e pouco propensa a sonhos dos anos 2020.

Como em duas obras-primas anteriores, “O Homem Sem Passado”, de 2002, e “O Outro Lado da Esperança”, de 2017, Kaurismaki traz um comentário sobre a vida nesse estranho país que é a Finlândia, em que as relações humanas por vezes conseguem ser tão glaciais quanto a bela Helsinki durante o inverno.

E a solução para trazer algum alento aos seus personagens, mais uma vez o diretor acredita estar no cinema. Em seu poder de aproximar pessoas, seja durante um encontro para assistirem a algum filme juntos, mas também o de propor na tela uma vida reinventada, sem a brutalidade e a frieza do mundo real.

Desde sempre Kaurismaki faz em sua obra citações aos seus filmes preferidos, mas em “Folhas de Outono” existe uma paixão pelo cinema e pelas suas possibilidades talvez ainda mais intensa do que de hábito. Há pôsteres de filmes espalhados por todo o longa, que nos entregam algumas de suas influências, que vão de Robert Bresson a Jean-Luc Godard, passando por Luchino Visconti e David Lean. Aliás, de certa forma, seu novo filme é um “Desencontro”, de 1945, à moda finlandesa. E, assim como o extraordinário melodrama de Lean, é um filme enorme em sua aparente “pequenez”.

Nada pior do que um cineasta que inventou um estilo e que, com o tempo, foi incapaz de escapar da fórmula criada por ele próprio, virando um prisioneiro de si mesmo. Não é o caso de Kaurismaki, que consegue sempre incluir algum elemento de frescor, de novidade, de uma paixão renovada àquilo que faz. Seu cinema continua tão ou mais admirável a cada novo filme.

FOLHAS DE OUTONO

Onde: Nos cinemas

Classificação: 14 anos

Elenco: Alma Poysti, Martti Suosalo, Jussi Vatanen

Produção: Alemanha, 2023

Direção: Aki Kaurismaki

Avaliação: Excelente

BRUNO GHETTI / Folhapress

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