RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Quando era criança, Hevalcy Ferreira da Silva fugia de casa nas noites de dezembro e janeiro. Ele fingia dormir, mas saía escondido da mãe para ir atrás da Folia de Reis do morro da Mangueira.
Hoje, aos 49 anos, ele é o mestre da Sagrada Família da Mangueira, único grupo de Folia de Reis em atividade na comunidade.
Festejo de origem católica presente no Brasil desde o século 18, a Folia de Reis narra, em forma de auto, a jornada bíblica do nascimento de Jesus e a viagem dos três reis magos -Melchior, Gaspar e Baltazar- para visitá-lo em Belém e presenteá-lo com ouro, incenso e mirra.
Em todo o Brasil as apresentações começam no Natal e vão até 6 de janeiro, o Dia de Reis. Na cidade do Rio de Janeiro, se estende até o dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião, padroeiro da capital.
As folias são compostas por mestres e contramestres, responsáveis pelo canto; bandeireiros, que levam o estandarte; foliões; instrumentistas; e palhaços, estes mascarados e vestidos com roupas coloridas.
O festejo atravessou os anos como uma tradição do interior dos estados, especialmente Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Na capital carioca, a festa tem tentado resistir frente ao desinteresse dos mais jovens e a debandada de membros para igrejas evangélicas.
Em 2022, durante uma apresentação, a folia de reis da favela Santa Marta, em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro, passou em frente a uma igreja local. Ronaldo Silva Júnior, 40, um dos líderes do grupo, diz ter ouvido o pastor gritar durante o culto: “Queima o capeta!”
Mesmo a violência da cidade tem sido um obstáculo. Ronaldo Silva, 64, mestre do Penitentes, conta um episódio, ocorrido há quase uma década, em que seu grupo foi impedido de se apresentar na Rocinha, controlada à época por uma facção criminosa diferente do Santa Marta.
“Era sábado à noite e o plano era cantar até domingo de manhã. Assim que subimos a Rocinha vieram uns homens armados dizendo ‘mete o pé por onde vocês subiram’. Depois vieram nos pedir desculpas, mas não voltamos.”
A federação que reúne os grupos da cidade do Rio de Janeiro já teve mais de uma centena de filiados, mas hoje são apenas 11. As folias que sobraram tentam modificar características para torná-la mais atraente aos mais novos.
“Fazemos de tudo para segurar a tradição, mas em algum momento precisamos ceder. Fomos mudando a cor, as vestimentas, a dança e as batidas para atrair os mais jovens”, afirma Robson Tipaya, 44, mestre da Folia de Reis A Brilhante Estrela do Oriente, do morro da Formiga, na Tijuca, zona norte do Rio.
A indumentária e o tom de azul da Brilhante Estrela do Oriente agora mudam a cada ano. Para o mestre Tipaya, a troca das roupas desperta interesse nos jovens. A bateria criou conversões no toque, como as paradinhas das escolas de samba, e os cantos de reza, antes em tom de lamento, ficaram mais alegres e vibrantes.
O grupo comandado por Tipaya tem 60 participantes e é uma das três folias da Formiga, comunidade onde os festejos são mais fortes.
Envelhecimento e morte de antigos mestres da Folia de Reis também contribuíram para a extinção de muitos grupos do Rio. Na folia Penitentes do Santa Marta, Ronaldo Silva quer dar continuidade ao legado. Ele recebeu a folia do pai José Diniz, morto em 2020.
“Um dia dentro de casa, depois que meu pai morreu, puxei uma gaveta e vi uma profecia enorme escrita à mão. A profecia são os versos que o mestre canta. Ali está tudo o que precisávamos para continuar”, diz o mestre, que hoje prepara o filho para o cargo.
Na Mangueira, a Folia de Reis Sagrada Família chegou a ser extinta, mas foi resgatada pelo hoje mestre Hevalcy Ferreira da Silva. O grupo original foi fundado por trabalhadores que saíram de São João do Sapucaia (MG) para morar na Mangueira e trabalhar na antiga fábrica da Cerâmica Brasileira, vizinha ao morro.
“Um antigo morador me mostrou fitas gravadas nas folias de reis do interior de Minas Gerais. Eu fiquei fascinado, não saía da casa dele. Ele percebeu que eu queria fazer parte disso. Um dia me levou na Divisão de Folclore do estado, onde as peças de uma extinta folia de reis da Mangueira estavam guardadas. Trouxe tudo e anos depois consegui colocar uma folia na rua de volta.”
A Sagrada Família é uma das que se mantém de pé a duras penas, segundo o mestre. Este ano o grupo conseguiu custear as apresentações com cerca de R$ 20 mil recebidos através da Lei Paulo Gustavo, destinada ao fomento do setor cultural.
Desde 2022, o governo do estado do Rio realiza um edital anual que divide R$ 1,95 milhão para 130 mestres de todo o estado. Cada um recebe R$ 15 mil para custear as atividades.
“Cada mestre doa sangue, suor e lágrimas para que a folia não acabe, e muitos são derrotados. Contamos com a sorte de sermos contemplados em um edital, o que não é sempre. Somos 11 andorinhas tentando fazer verão.”
YURI EIRAS / Folhapress