ARACAJU, SE (FOLHAPRESS) – Em um 10 de maio como hoje, há 25 anos, os brasileiros viam pela última vez na TV uma letra M dourada com bolinhas nas pontas: era a logomarca da Rede Manchete, a última grande emissora aberta que saiu do ar no Brasil, em 1999. Seu legado, para o bem e para o mal, é sentido até hoje.
A Manchete era o mais audacioso investimento do Grupo Bloch, empresa fundada em 1922 e que virou uma das maiores editoras de revistas do Brasil. Foi fundada por Adolpho Bloch (1908-1995), conhecido como Seu Adolpho. Em 1981, junto com Silvio Santos, ele ganhou concessões de canais que haviam sido extintos (Tupi, Excelsior e Continental).
Dois anos depois, em 5 de junho de 1983, Bloch colocou sua TV no ar. Com o slogan “televisão de primeira classe”, a Manchete tentava atrair um público mais qualificado.
Deu espaço para grandes nomes começarem, como Xuxa Meneghel e Angélica ainda nos 1980, e investiu forte no jornalismo. Em 1984, fez história ao produzir a primeira transmissão dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, com exclusividade. Também faziam sucesso na época as coberturas de bailes carnavalescos, que reuniam celebridades e foliões anônimos em clubes como Metropolitan, Scala e Monte Líbano.
Elogiada, mas com altos gastos e sem tanto retorno financeiro, a emissora deu uma virada popular a partir de 1988. O período coincide com a chegada de um jovem diretor que tinha ideias bem arrojadas: Jayme Monjardim, que trabalhou por lá até 1993.
AUGE PANTANEIRO
“A Manchete foi um sonho na minha vida. Pela ousadia, por tudo que a gente viveu. Fui a convite de Nilton Travesso, que perguntou ao Boni se eu poderia sair da Globo para assumir a direção artística da Manchete. Eu fiz uma grande amizade com seu Adolpho, que me tratava como um filho”, diz Monjardim em conversa com o site F5.
Uma das prozas que Monjardim conseguiu foi viabilizar a produção de “Kananga do Japão” (1989), novela que contava a história do Rio de Janeiro nos anos 1930, um desejo antigo do seu Adolpho. “Ele tinha um sonho de colocar no ar a novela ‘Kananga do Japão’, que foi ao ar em 1989. Eu viabilizei, convidei a Tizuka Yamazaki para dirigir, e foi um sucesso por ter ares de superprodução”, relembra.
De fato, a novela foi um êxito para os padrões da Manchete. Mas o grande sucesso viria a seguir. Monjardim conversou com Benedito Ruy Barbosa, que estava insatisfeito na Globo pela falta de oportunidades no horário nobre.
“O Benedito me lembrou de uma novela que estava engavetada pela Globo, e eu tive a sorte de lembrar também, que era ‘Pantanal’. Era sobre uma região que o Brasil ainda não conhecia. E eu adorei a ideia de produzir. Falei para ele: ‘Você vem, Bene, eu faço a novela para você e coloco no ar às 9 da noite’. Até então, ele só ia ao ar às seis da tarde”, relembra.
Em 27 de março de 1990, esteava “Pantanal”, uma revolução nas novelas, escrita por Benedito e dirigida por Monjardim. Um sucesso que foi líder de audiência e venceu a Globo nos números, algo muito raro naquela época.
“Foi um processo mágico, não tinha carro, caminhão, era tudo avião ou barco. Foi muito difícil, mas fizemos uma linda novela, ousada, e que eu tenho orgulho. A ousadia continuou depois, com ‘Ana Raio e Zé Trovão’ (1991), que foi uma novela toda feita em externas”, relembra Monjardim.
A QUEDA E O LEGADO
Mas o auge da Manchete durou pouco. Em 1992, muito endividada e com salários atrasados, a Manchete foi vendida para a IBF (Indústria Brasileira de Formulários), de Hamilton Lucas de Oliveira. Monjardim saiu, mas voltou logo em seguida, a convite do executivo. O fim da história, desta vez, foi triste. Hamilton deixou a Manchete totalmente sem dinheiro e os funcionários entraram em greve.
“Os salários começaram a atrasar, passamos a ter problemas com o sindicato e eu fui obrigado a mudar a cabeça da rede do Rio para São Paulo para seguir no ar”, conta. “Quando voltou para as mãos dos Bloch, em 1993, quem estava lá para entregar o comando de volta aos Bloch? Eu. Fiquei triste por aquele momento da TV que fez as coisas mais lindas da minha vida.”
Na volta dos Bloch, alguns sucessos importantes. Em 1º de setembro de 1994, estreava “Os Cavaleiros do Zodíaco”, anime que mudou a forma como desenhos japoneses eram vistos no Brasil. Sucesso comercial e de audiência, a saga de Seiya abriu todo um mercado comercial no país. Só no Natal de 1995, foram vendidos 500 mil bonecos oficiais. Foi o brinquedo mais vendido daquele período.
Nas novelas, um outro êxito foi “Xica da Silva” (1996), que alçou Taís Araújo ao estrelato. A atriz foi a primeira negra a protagonizar uma novela. Mas as dificuldades financeiras eram maiores do que nunca.
“Em ‘Tocaia Grande’ (1995), quando eu comecei, uma galera era contratada, mas nunca começavam a gravar porque não tinha dinheiro para fazer”, relembrou Taís em conversa sobre a novela em 2021. “A novela me trouxe pessoas, né? No meu trabalho, a melhor coisa é a experiência de viver outras vidas e ter pessoas. Tem gente que eu trabalhei junto em Xica da Silva que está na minha vida até hoje.”
Em 1997, a decadência da Manchete já era vista também no jornalismo. Novos talentos iam chegando mesmo assim. É o caso de Claudia Barthel, última âncora do Jornal da Manchete. Ex-Globo, Barthel chegou para ser repórter em 1997, mas se destacou e assumiu a apresentação logo em um dia histórico: a morte da princesa Diana, em 31 de agosto daquele ano.
“Era muito bom trabalhar lá, porque a equipe era animada e de primeira. Uma mistura de jornalistas experientes com alguns jovens cheios de garra. Havia um cuidado muito grande com a edição, com o visual do jornal, com os cenários, a iluminação, o som. A Manchete era, apesar da decadência já percebida, ainda um nome bastante conhecido no mercado jornalístico”, lembra Barthel ao F5.
O FIM E A DÍVIDA IMPAGÁVEL
A pá de cal na história da emissora foi a novela “Brida” (1998), adaptação do livro de Paulo Coelho. Concebida para ser um grande sucesso, a trama foi um fracasso imenso de público, o que prejudicou toda a Manchete. O folhetim foi encerrado sem final e os atores entraram em greve. Até hoje, muitos atores lutam na Justiça para receber pela participação.
“Nos meses finais, era tudo muito confuso por que não sabíamos o que poderia acontecer. Começaram a tirar programas do ar e a atrasar salários. Havia famílias em que pai e mãe eram funcionários e não conseguiam mais levar comida pra casa”, conta Claudia Barthel.
Em 1999, a Manchete precisava ser vendida para continuar. E foi. Para a então TV Ômega, de Amilcare Dallevo Jr e Marcelo de Carvalho, que fundaram a RedeTV! pouco depois. Bathel apresentou o Jornal da Manchete até o fatídico 10 de maio de 1999.
“Quando a Manchete foi vendida, uma pequena turma, em torno de 10 pessoa, foi para São Paulo, inclusive eu, por que o comprador era daqui. Colocamos a programação do ar de lá. O restante ficou sem emprego”, conclui Barthel, que seguiu na RedeTV! até 2019.
Atualmente, ainda há oito CNPJs registrados ou ligados à TV Manchete Ltda., antiga razão social da emissora. Somadas as dívidas de cada um, o passivo da empresa está na casa de R$ 1,324 bilhão, segundo dados da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional). O órgão é responsável por cobranças fiscais e regulariza débitos de empresas que devem em todo o Brasil.
O grosso da dívida da Manchete está relacionado a compromissos trabalhistas. Do total do débito, R$ 593,7 milhões são de pagamentos de salários, 13º e férias que não foram depositados à época.
Mesmo fora do ar há 25 anos, o legado que a Manchete deixou continua vivo. Empresários interessados no acervo da emissora arremataram um lote de 25 mil fitas por R$ 500 mil, além de ficarem com a marca Manchete. O valor foi usado para pagamento de dívidas. Procurados pelo F5, os atuais donos não quiseram se pronunciar.
GABRIEL VAQUER / Folhapress