RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – As Forças Armadas impediram em 2015, durante a gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), a realização de uma pesquisa que abordaria a ocorrência de assédio sexual entre militares.
O projeto era uma das prioridades da Comissão de Gênero criada pelo Ministério da Defesa um ano antes, mas foi interrompido após interferência do então chefe da pasta, Jaques Wagner (PT-BA), pressionado pelos três comandantes das Forças Armadas.
A comissão foi extinta em 2019 pelo então ministro Fernando Azevedo e Silva, primeiro a comandar a pasta na gestão Jair Bolsonaro (PL). O atual ministro José Múcio Monteiro afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que avalia a recriação do grupo.
Jaques Wagner, atualmente senador, disse ter dado determinação para “que o levantamento não induzisse a respostas, nem suprimisse o eventual surgimento espontâneo do problema”. A FAB (Forças Aérea Brasileira) e a Marinha afirmaram, em nota, adotar medidas de prevenção de assédio, mas não comentaram o veto à pesquisa. O Exército não respondeu.
Como a Folha de S.Paulo mostrou em julho, a Justiça Militar tem instaurado nos últimos anos cada vez mais ações penais contra militares sob acusação de crimes sexuais. Os casos envolvem até oficiais superiores da FAB.
Vítimas relatam falhas e corporativismo nas apurações internas e desestímulo a denúncias de abusos até anos recentes.
Desde a publicação das reportagens, há pouco mais de um mês, a Ouvidoria da Mulher do Ministério Público Militar recebeu cinco denúncias de assédio sexual. É a mesma quantidade de relatos que o órgão havia recebido até julho, após um ano e cinco meses de sua criação.
Documentos obtidos pela Folha de S.Paulo por meio da Lei de Acesso à Informação mostram como militares integrantes da comissão, em sua maioria homens, afirmavam não haver registros de casos do tipo entre militares.
Eles resistiam em colocar perguntas diretas sobre assédio numa pesquisa sobre as condições das mulheres nas Forças e diziam ver componente político na abordagem.
De acordo os documentos, a resistência apareceu já na terceira reunião do grupo, em abril de 2015. Um dos que demonstraram contrariedade foi Adriano Portella, representante da Secretaria de Organização Institucional. Ele afirmou se preocupar com o que chamou de “denuncismo vazio”.
No quarto encontro, em julho de 2015, a resistência se tornou mais explícita. O almirante Jorge Machado, representante da Marinha, afirmou que a Força iria barrar qualquer pergunta sobre assédio sexual ou qualquer crime no questionário.
“Essas coisas são crimes e, na Marinha, quando informados, são efetivamente combatidos”, disse ele.
O general Fernando Freitas, representante do Exército, expôs a preocupação de que a condução da pesquisa pudesse “prejudicar a coesão da tropa”. “Não se poderia dar a entender à tropa que estamos privilegiando a mulher, pois essa percepção poderia afetar a coesão do grupo.”
A pesquisadora Mariana Fonseca Lima, coordenadora do projeto, disse que a pesquisa não pretendia averiguar fatos, mas sim percepções. “Excluir a detecção desse fato da pesquisa irá prejudicá-la. É um tema muito sensível. Mas, se é sensível para ser tratado aqui, imagine para quem sofre o abuso!”
Em setembro de 2015, a comissão iniciou seus trabalhos com um comunicado. Sílvio Albuquerque, chefe de gabinete de Jaques Wagner, informou que o então ministro se reuniu com os três comandantes das Forças Armadas, preocupados “com um aspecto específico da pesquisa”
Albuquerque anunciou a determinação do então ministro para que o tema assédio sexual não fosse tratado em questionário “de maneira direta, objetiva e explícita ou induza respostas”.
De acordo com a memória documentada da reunião, o ministro orientou apenas que o tema não fosse proibido, sem impedir “o eventual surgimento espontâneo do problema”.
Um dos comentários críticos à decisão partiu do brigadeiro Antônio Coutinho, representante da Escola Superior de Guerra.
“O ministro tem a preocupação, dentro de um viés político, de evitar um atrito. Mas é uma pena. Se nós não tratarmos aqui, estaremos nos enganando, porque o assédio existe, é verdadeiro, tem que ser encarado de frente, sem buscar palavras para substituir.”
“Por mais inteligente que seja a elaboração das perguntas, elas podem produzir um resultado que não vai tipificar e direcionar [providências]. Não precisa ficar com medo, porque isso ocorre no mundo inteiro.”
Na sexta reunião, em junho de 2016, já durante a gestão Michel Temer, o brigadeiro Maxneif de Castro, representante a FAB, deixou claro no início da reunião sua contrariedade com a existência da comissão. Ele afirmou que a Aeronáutica já cuidava da inserção da mulher na força, razão pela qual não via sentido na existência do grupo.
Demétrio Carneiro, chefe de gabinete do então ministro Raul Jungmann, disse que a comissão contribuía para divulgar o “belíssimo papel que as Forças Armadas desempenham, há décadas, em relação à equidade de gênero”.
“Embora seja assunto perfeitamente assimilado, ainda é um tema caro e importante na sociedade, defasado em outras áreas nacionais, razão pela qual a instituição militar, dessa forma, acaba servindo como referência e exemplo de inserção e de responsabilidade social para outros esteios da sociedade”, disse Carneiro, segundo os documentos da comissão.
Houve apenas mais duas reuniões da comissão, sendo a última em junho de 2017. O grupo foi extinto em abril de 2019. Segundo a reportagem apurou, a pesquisa, que abordava outros temas relacionados à questão de gênero, nunca foi aplicada.
Um levantamento realizado em 2020 pelos juízes Mariana Aquino e Rodrigo Foureaux com mulheres integrantes de forças de segurança (incluindo também PM, Guarda Municipal e bombeiros, entre outros) mostrou que 83% das que declararam ter sofrido assédio sexual no trabalho não denunciaram o caso.
Segundo os dados da pesquisa, feita sem o conhecimento dos comandos das forças de segurança, 163 militares das Forças Armadas declararam ter sofrido assédio, número superior ao de investigações abertas nos últimos sete anos.
JAQUES WAGNER DIZ QUE NÃO HOUVE VETO
O senador Jaques Wagner disse que não houve veto à detecção de casos de assédio sexual ao longo da pesquisa. Ele afirmou que o objetivo da determinação foi orientar para que o questionamento sobre o assunto “não induzisse a respostas, nem suprimisse o eventual surgimento espontâneo do problema em foco”.
“Determinei, à época, que a pesquisa trouxesse perguntas acordadas por todos os envolvidos, incluindo, claro, a Comissão de Gênero, de forma que o levantamento não induzisse a respostas, nem suprimisse o eventual surgimento espontâneo do problema em foco, que era o assédio sexual, uma chaga que atinge a sociedade como um todo e que, para ser combatida, não deve ser encarada como tabu em nenhum segmento, nem em 2015, nem agora”, disse ele.
A FAB disse, em nota, que repudia e combate o assédio sexual em todos os níveis hierárquicos da instituição. Afirmou também estar dedicada a oferecer treinamento apropriado para erradicar casos na instituição.
“Para consolidar essa postura, a FAB está intensificando seus esforços na promoção da igualdade de gênero em suas fileiras. Um reflexo disso é que nos últimos três anos cerca de 52% dos militares incorporados no seu efetivo como temporários foram mulheres”, disse a FAB.
A Marinha afirmou, em nota, ter norma interna que previnem “condutas atentatórias contra a pessoa e à discriminação por razão de sexo” e “concede efetiva proteção contra o assédio sexual”. “Nesse sentido, os propósitos de eventual Comissão de Gênero encontram-se plenamente atendidos pelas normas em vigor.”
O Exército não se posicionou sobre o tema.
ITALO NOGUEIRA / Folhapress