Fórmula de Modi de acirrar tensões religiosas está esgotada, diz analista

NOVA DÉLI, ÍNDIA (FOLHAPRESS) – A oposição reviveu, Narendra Modi sobreviveu, mas ficou claro que inflamar tensões entre hindus e muçulmanos deixou de ser fórmula garantida para ganhar votos. Esse é o diagnóstico dado pelo cientista político Sanjay Kumar, um dos mais prestigiados da Índia, às eleições gerais recém-concluídas.

A aliança liderada pelo BJP, a legenda do primeiro-ministro Modi, conseguiu a maioria da Lok Sabha (Câmara baixa). A vitória, porém, teve gosto de derrota, pois o partido perdeu muitos assentos e não detém mais a maioria sem os aliados da coalizão.

Mesmo assim, para Kumar, é cedo para falar em um ocaso de Modi, que costumava ganhar com votações avassaladoras e tinha aura de invencível.

“Acho que a popularidade dele chegou a um pico, não cresce mais”, disse. “Mas não se tratou de uma onda que levou as castas mais baixas a abandonarem o BJP. O partido teve ganhos em estados mais para o sul”, disse Kumar, que é codiretor do programa Lokniti do Centro de Estudos das Sociedades em Desenvolvimento (CSDS, na sigla em inglês).

PERGUNTA – O centro em que o sr. atua publicou uma pesquisa apontando que mais de 60% dos indianos citavam desemprego e inflação como principais preocupações. O resultado da eleição mostrou isso?

SANJAY KUMAR – Sim. O BJP sofreu perdas muito grandes em vários estados no norte, como Rajastão, Haryana, Uttar Pradesh e Bihar, e foi lá que a oposição mais bateu nessas questões. Nas nossas pesquisas, os eleitores desses estados apontavam essas preocupações. Mas claro que houve outros fatores.

Por exemplo, Modi afirmou que o BJP queria atingir 370 assentos para mudar a Constituição. E havia o temor entre eleitores de que essa mudança fosse reduzir as cotas para as castas mais baixas [dalits e outras castas prejudicadas, as OBCs]. Muitas pessoas nesses estados são beneficiárias dessas cotas. Isso prejudicou o BJP, mas, definitivamente, desemprego e alta de preços tiveram um papel [maior].

P. – O líder do opositor Partido do Congresso disse que “os pobres salvaram a Constituição”. Houve uma migração em massa desses eleitores do BJP para seus adversários?

SK – Isso parece ter ocorrido em Uttar Pradesh, mas não se tratou de uma onda levando as castas mais baixas a abandonarem o BJP. O partido teve ganhos em estados mais para o sul, como Tamil Nadu, Andhra Pradesh, Telangana e Kerala. Não seria razoável dizer que houve uma onda nacional contra o partido.

P. – O BJP apostou que a construção do templo hindu de Ram, em Ayodhya, onde ficava uma mesquita, e outras questões religiosas mobilizariam os eleitores. Isso ocorreu?

SK – Não, de jeito nenhum, e foi isso que atrapalhou o BJP. Eles tentaram fazer do templo um tema central, mas nem esse tema nem questões religiosas em geral reverberaram com o eleitorado. Mal se falou disso.

P. – Modi aprofundou um discurso anti-islâmico na campanha. Foi uma estratégia eleitoral eficiente?

SK – Os resultados mostram que as tensões entre hindus e muçulmanos não são mais uma fórmula garantida para mobilizar eleitores. Em diversas ocasiões, essa retórica foi usada por Modi, de incutir o medo dos muçulmanos nos hindus a favor do BJP, mas há um limite de ganhos eleitorais. Não diria que os eleitores rejeitam totalmente esse discurso, mas o BJP não consegue ampliar o apoio ao partido com esse instrumento.

P. – A fórmula de Modi de combinar programas sociais, investimento em infraestrutura e nacionalismo religioso está esgotada?

SK – Não diria isso. Os programas sociais que beneficiam grande parte das camadas mais pobres ainda geram muito apoio ao BJP. Nos últimos anos, houve uma migração maciça de eleitores para o partido por causa desses benefícios, e os votos que o BJP conseguiu reter devem-se a isso. Mas acirrar as tensões entre hindus e muçulmanos deixou de render dividendos políticos.

Acho, inclusive, que eles vão reduzir a ênfase nesses temas, agora que precisam negociar com membros da coalizão. Grandes partidos que fazem parte da coalizão têm, em seus estados, um eleitorado muçulmano considerável, e eles não vão querer desagradar a esses votantes. Será difícil o BJP aprovar a reforma do Código Civil [que unifica a legislação, eliminando especificidades para outras religiões, como a permissão para que muçulmanos possam ter mais de uma esposa].

P. – O senhor vê uma fadiga do eleitorado em relação a Modi?

SK – Eu não usaria a palavra fadiga, mas acho que ele tenha atingido seu limite de popularidade e agora começou a declinar. A campanha inteira foi totalmente centrada em Modi, diferentemente de outras eleições, e o fato de o BJP [sozinho] não ter obtido a maioria, como das outras vezes, mostra esse declínio. A oposição, apesar de não ter ganhado a maioria, está em júbilo, então há muito otimismo.

P. – As pesquisas de opinião foram também as grandes derrotadas nesta eleição. Por que erraram tanto?

SK – A maioria das pesquisas não ficou muito longe da porcentagem dos votos que o BJP teria. Disseram que seriam 40% dos votos, e foram cerca de 37%. O problema é que a técnica tem limitações. Nós não fazemos projeção de assentos nas nossas pesquisas. Só usamos porcentagem. Como essas porcentagens se traduzem em vagas é algo complicado, e não acho que as pesquisas estejam preparadas para fazer isso de forma precisa.

P. – É possível que a coalizão da oposição consiga conquistar partidos da aliança de Modi e fique com a maioria no Parlamento?

SK – Muito difícil de prever, mas não seria uma surpresa. Isso acontece muito na Índia, partidos mudarem de coalizões, irem para o outro lado, e algumas das legendas da coalizão de Modi são mestres em fazer isso.

Raio-x | Sanjay Kumar

Sanjay Kumar é codiretor do programa Lokniti do Centro de Estudos das Sociedades em Desenvolvimento (CSDS, na sigla em inglês), em Déli. Cientista político e especialista em pesquisas de opinião pública, tem mestrado em ciência política na Universidade de Déli e autor de diversos livros

PATRÍCIA CAMPOS MELLO / Folhapress

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