Fotógrafa que retratou o Xingu na ditadura diz que o essencial é não ser percebido

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Três fotos dispostas em colunas separadas mostram diferentes grupos de mulheres indígenas reunidas para suas atividades cotidianas, não de subsistência, mas de lazer —elas correm, dançam, discutem. Cada clique é de uma fotógrafa diferente, forasteiras não só para os povos yanomami e xikrin que retratavam, mas para o próprio Brasil.

Pela primeira vez, os trabalhos de Maureen Bisilliat, Claudia Andujar e Lux Vidal são expostos juntos, no Centro MariAntonia, em São Paulo, na mostra “Trajetórias Cruzadas”. As três europeias se estabeleceram no Brasil nos anos 1950, e se dedicaram a retratar o Brasil profundo, composto por tradições e cotidianos de comunidades interioranas distantes das metrópoles do litoral.

Bisilliat, inglesa, tinha o pai diplomata, enquanto a família judaica de Andujar fugia da perseguição nazista, e a de Lux da destruição da Guerra Civil Espanhola. Entre seus trabalhos, se destacam séries dedicadas aos indígenas, numa época em que essas comunidades não tinham respaldo do governo militar e eram consideradas estrangeiras dentro do seu próprio país.

Foi na década de 1970 que Andujar se aproximou do povo yanomami, por exemplo. Os cliques que tentavam traduzir a cosmovisão —conexão espiritual entre humanos e natureza— se tornaram símbolos visuais para a luta pelo reconhecimento dos direitos indígenas na Constituição de 1988.

Das três, Vidal é a única que não exerceu a profissão de fotógrafa. As imagens de sua autoria, nunca expostas antes, serviram, segundo ela própria, para ilustrar suas pesquisas antropológicas sobre as comunidades e seus grafismos. O jogo de luz e sombras e a centralização dramática dos personagens, porém, fazem dela uma artista a sua revelia, diz a curadora Sylvia Caiuby.

A conexão de Bisilliat com os indígenas nasceu de um convite. Nos anos 1970, foi convidada pelo indigenista Álvaro Villas Boas para fotografar o Xingu. O trabalho durou três anos, entre idas e vindas ao território, e se tornou uma referência visual dos povos indígenas na época em que ainda circulavam poucas imagens do Xingu.

Bisilliat também administrava a galeria Bode, dedicada à arte popular, e embarcaria em uma viagem ao lado de seu marido, Jacques Bisilliat, e o arquiteto Antônio Marcos Silva, a pedido de Darcy Ribeiro. O objetivo era encontrar trabalhos de artistas autônomos e artesãos Brasil afora para compor o Memorial da América Latina —a missão acabou ultrapassando as fronteiras, e o trio coletou tesouros também do México, Guatemala, Equador e Peru.

Resquícios dessa busca, de máscaras indígenas a bandeiras de Carnaval, ocupam as paredes da pequena casa de Bisilliat, na Bela Cintra, em São Paulo. Na poltrona de sua casa, no centro de São Paulo, aos 94 anos, ela resiste à tomada da região por lojas luxuosas de roupas e móveis.

“A primeira vez que trouxemos cerâmicas indígenas foi numa kombi. Quebrou tudo”, diz. Aos poucos, eles se aperfeiçoaram na tarefa de carregar artefatos até o Memorial. As andanças pelo país dariam vida a série “A João Guimarães Rosas”, presente na exposição quando, assessorada pelo escritor mineiro, a fotógrafa viajou pelo interior do estado para dar cara aos personagens e cenário às descrições de “Grande Sertão: Veredas”, um dos mais importantes romances da literatura nacional.

Já “Caranguejeiras” mostra crianças e idosos mergulhados na lama para caçar caranguejos na aldeia de Livramento, na Paraíba, para onde Bisilliat foi enviada pela revista Realidade —ainda era a época das grandes reportagens fotográficas. Outras vezes, precisou desobedecer aos editores que pediam fotos em preto e branco. “Não tinha como tirar a cor, ela saltava aos olhos”.

Hoje em dia, segundo ela, o seu contato com Guimarães Rosa seria quase impossível. Para ela, a hiperconexão promovida pelos celulares fez as pessoas mais intangíveis, e dificilmente alguém prestigiado como o escritor teria cedido seu tempo a uma desconhecida. A vida digital efêmera, somada as mudanças climáticas, a ressaca da pandemia e ao alto custo de vida fazem dessa época “mais traumática”.

Outras coisas, porém, vieram para o bem. Bisilliat diz que admira o trabalho de jovens indígenas que, hoje, são os responsáveis por retratar o seu próprio cotidiano para quem vive fora das aldeias. Em tempos de discussão sobre representatividade, porém, ela não descarta o olhar forasteiro, como foi o seu próprio, desde que não haja o ímpeto de dominar.

Sua própria situação de imigrante ajudou na tarefa delicada. “Nunca tive realmente um país meu. Meu talento era entrar sem perturbar e ser aceita, porque a vida toda tinha sido isso. Se fui boa na fotografia, é porque soube entrar no novo, sem ser percebida. Parece pouco, mas é essencial”. Hoje, tem um único arrependimento. “Se eu tivesse filmado, teria guardado a voz das pessoas.”

TRAJETÓRIAS CRUZADAS

– Quando Terça a domingo, e feriados, das 10h às 18h. Até 23/02

– Onde Centro MartiAntonia -r. Maria Antônia, 258, São Paulo

– Preço Grátis

– Classificação Livre

ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress

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