BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS) – Dominique Pelicot, o marido que passou anos estuprando sua mulher dopada e convidando outros homens para violá-la enquanto filmava as cenas de abuso, foi condenado a 20 anos, a pena máxima, nesta quinta-feira (19) por um tribunal de Avignon, no sul da França.
Dominique foi considerado culpado por estupro com agravantes e por gravar e distribuir imagens do abuso. Foi condenado também por fazer imagens sexuais de sua filha adulta e de suas duas noras. Cabe recurso, mas sua advogada declarou após a sessão que ela e o cliente ainda avaliarão a possibilidade.
Do grupo recrutado pelo ex-marido, 47 foram condenados por estupro, dois por tentativa de estupro e dois por abuso sexual. Um dos acusados, de paradeiro desconhecido, foi julgado à revelia. Receberam penas de 3 a 15 anos, em alguns casos com sursis, suspensão condicional, inferiores às pedidas pela Promotoria. Seis deles deixaram o julgamento em liberdade. Grupos de mulheres protestaram à frente do tribunal. “Tinha que ser perpétua”, afirmou uma delas.
Um dos acusados, Jean-Pierre M., chamado de discípulo de Dominique, foi condenado a 12 anos. Ele dopou a própria mulher com a ajuda do réu principal para que os dois a violassem.
Gisèle Pelicot, 72, ao lado de familiares, afirmou na saída do tribunal que respeitava a decisão dos juízes. “Tenho confiança em nossa capacidade de compreender coletivamente um futuro no qual todos, homens e mulheres, possam viver em harmonia, com respeito e compreensão mútuos.”
Seus três filhos -Florián, 38; Caroline, 45; e David, 50- não teriam gostado do desfecho do julgamento, segundo a agência de notícias AFP. Um membro da família, que pediu anonimato, afirmou que eles estavam decepcionados com o tamanho das penas.
A decisão proferida por cinco magistrados, após três meses e meio de julgamento, encerra um caso que chocou o país devido à sua natureza e surpreendeu o mundo pela forma com que a vítima enfrentou o processo. Gisèle abriu mão do sigilo no julgamento e exigiu que as imagens gravadas pelo ex-companheiro por quase dez anos fossem exibidas na corte. “Eu queria que a sociedade pudesse participar deste debate. Nunca me arrependi dessa decisão.”
Sua frase, do começo do julgamento, “Que a vergonha mude de lado”, era repetida aos gritos na saída dela do tribunal, junto com um coro de “Merci, Gisèle”.
Dominique, 72, admitiu todas as acusações e afirmou ao tribunal que os 50 corréus também eram culpados. “Sou um estuprador como os outros nesta sala”, declarou em seu primeiro depoimento. As evidências em vídeo impediram os homens de negar que estiveram na casa dos Pelicots, na localidade de Mazan, mas 35 contestavam a acusação de estupro com agravante, que acarreta penas maiores.
“Meu corpo a estuprou, mas meu cérebro não”, chegou a afirmar Christian L., que é bombeiro voluntário. Muitos alegaram que foram enganados por Dominique, dizendo que ele os convidou para um ménage com a esposa. Outros afirmaram que foram levados a crer que ela estava dormindo -ou fingia estar dormindo- como parte de uma fantasia sexual do casal.
“Todos sabiam, não podem dizer o contrário”, disse Dominique.
A legislação da França define estupro como qualquer ato sexual cometido por “violência, coerção, ameaça ou surpresa”. Não há referência a consentimento, daí a linha adotada por boa parte dos defensores. Um dos advogados de Gisèle, Stéphane Babonneau, contestou o argumento: “Não existe consentimento equivocado no caso de uma mulher inconsciente.”
Nenhum dos réus procurou a polícia, como notou também a acusação. Todos os 50 são provenientes de cidades e vilarejos que ficam em um raio de 50 quilômetros de Mazan, onde se deu grande parte das agressões. O perfil variado, homens de 26 a 74 anos, motoristas de caminhão, soldados, seguranças, um jornalista e um DJ, fez a mídia francesa criar uma figura para designá-los, “monsieur-Tout-Le-Monde”, ou “sr. Todo Mundo”.
O apelido denota também a proximidade dos agressores. Não é “alguém que você encontra tarde da noite em um estacionamento”, afirmou Gisèle, ao comentar que sua própria visão sobre violência sexual tinha mudado.
A Promotoria havia pedido pena máxima de 20 anos ao ex-marido e de 10 a 18 anos para 49 dos acusados. Para um homem acusado de tocar Gisèle enquanto ela estava inconsciente foram pedidos quatro anos de prisão. Estes foram os que a polícia conseguiu identificar nas imagens. No total, quase 80 homens teriam sido recrutados por Dominique.
O esquema só foi descoberto porque o ex-eletricista Dominique, que depois virou corretor de imóveis, foi preso ao tentar filmar por baixo da saia de mulheres em um supermercado em 2020. Ao examinar seu celular, os policiais encontraram imagens que levaram à investigação.
Os promotores denunciaram o que chamaram de “atos abjetos” nas considerações finais. “O que está em jogo não é uma condenação ou absolvição, e sim uma mudança fundamental das relações entre homens e mulheres”, declarou um deles, Jean-François Mayet.
O governo francês prometeu oferecer kits de testagem gratuitos em hospitais para mulheres que suspeitem terem sido vítimas de submissão química. Os testes serão capazes de detectar as drogas mais comuns usadas nesses casos. Há uma proposta também de alterar a legislação para permitir que mulheres vítimas de violência possam fazer a denúncia no próprio hospital, sem precisar se dirigir a uma delegacia.
Gisèle, no período do abuso, chegou a fazer exames por apresentar indisposição e lapsos de memória, provável efeito dos remédios que eram acrescentados em sua comida e bebida, e também por problemas ginecológicos. A hipótese de submissão química nunca foi abordada nos serviços de saúde.
Segundo reportagem da emissora alemã ARD, grupos no Telegram e na deep web trocam receitas de como sedar mulheres. Companheiras inconscientes são oferecidas para sexo, assim como imagens delas. Dominique recrutava homens para abusar de sua então mulher, que tinha entre 58 e 66 anos e já era avó no período, em um sala de bate-papo na internet chamada “Son Insu”, algo como “sem ela saber”.
“Para mim, este é o julgamento da covardia”, repetiu Gisèle três vezes na frente do ex-marido, em seu último depoimento, em novembro. Segunda ela, transformada em bandeira feminista e acompanhada por vários grupos de defesa da mulher nas últimas semanas, a sociedade precisa “mudar sua atitude sobre o estupro”.
Condenado, Dominique pode responder ainda por dois outras acusações de estupro, de casos antigos que afloraram no decorrer do atual processo. Há suspeitas também de que ele tenha abusado de outros membros de sua família.
JOSÉ HENRIQUE MARIANTE / Folhapress