SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Digo que há algo invisível que impele nossa vida rumo ao inesperado”, escreve a antropóloga francesa Nastassja Martin em “Escute as Feras”, livro lançado em 2019 no seu país de origem.
O imponderável a que ela se refere poderia ser o convívio intenso com o povo even, que mora nas florestas siberianas da península de Kamtchátka, no extremo leste da Rússia. Ligados a antigas crenças religiosas, os evens resistem ao estilo de vida pós-soviético.
Ao longo do livro, os comentários da antropóloga sobre esses grupos de caçadores e pescadores se revelam curiosos, mas o inesperado do parágrafo inicial não diz respeito aos evens. A autora fala de algo mais surpreendente e assustador -seu encontro repentino com um urso, um episódio do qual ambos saem feridos.
“Nesse dia 25 de agosto de 2015, o acontecimento não é: um urso ataca uma antropóloga francesa em algum lugar nas montanhas de Kamtchátka. O acontecimento é: um urso e uma mulher se encontram e as fronteiras entre os mundos implodem”, anota Martin.
Os efeitos desse episódio ecoaram do outro lado do mundo. O bicho da Sibéria mudou a vida da pesquisadora de Paris, que, por sua vez, mexeu com a rotina profissional de três amigas de São Paulo -a diretora Mika Lins, a atriz Maria Manoella e a editora Fernanda Diamant, integrante do conselho editorial deste jornal.
Elas estão à frente do monólogo “Escute as Feras”, que entra em cartaz neste sábado (11) no Sesc Ipiranga, em São Paulo. Uma estreia gestada por cerca de dois anos.
Manoella e Diamant trocavam dicas literárias de olho na possibilidade de adaptá-las para o teatro. Buscavam obras de ficção até que, em 2021, a editora leu “Escute as Feras”, àquela altura recém-lançado no Brasil pela editora 34 e, mais tarde, presente em diversas listas das melhores publicações do ano.
Não é uma ficção. A obra transita do relato pessoal às reflexões antropológicas e existenciais, percorrendo temas como o descaso com os povos originários, a negligência hospitalar e, claro, a vida selvagem.
Diamant percebeu que havia ali uma história a ser encenada, e Manoella se entusiasmou pela ideia de interpretar uma mulher que tem parte da sua mandíbula arrancada pela mordida de um urso e, a partir daí, se submete a uma sucessão de cirurgias. O passo seguinte foi trazer Mika Lins para o projeto.
As três começaram a pensar nas adaptações do texto em meio à negociação dos direitos autorais com Martin e a editora francesa Gallimard. Em julho do ano passado, conseguiram fechar o contrato e, aos poucos, a personagem foi ganhando vida em língua portuguesa.
Desde as primeiras conversas sobre o espetáculo, existia a vontade de desenvolver um experimento sonoro, com a participação de Lúcio Maia, guitarrista da banda recifense Mundo Livre. No fundo do palco, ele se vale de instrumentos musicais e um arsenal tecnológico para representar a natureza por meio dos sons das montanhas siberianas –vulcões, ventos, bichos das florestas.
Atriz com mais de 30 peças no currículo, como o díptico teatral “As Três Irmãs” e “A Semente da Romã”, de 2022, Manoella enfrenta seu primeiro monólogo. Um solo que, em alguns momentos, pode ser visto como um dueto de uma atriz e um músico -parceiros na vida pessoal agora juntos no palco.
Foi do guitarrista a sugestão de incorporar citações do La Ursa, uma tradição do Carnaval de Pernambuco e da Paraíba. Outra adaptação rumo a uma certa brasilidade nasceu de uma ideia de Diamant: incluir trechos de “Grades e Caixas”, conto da escritora Ana Paula Pacheco que reproduz as falas de um urso. Assim, o animal do subártico se projeta, vez ou outra, nos trópicos abaixo do Equador.
Mas algo aí parece não fazer sentido. Se “Escute as Feras” é um monólogo em que Manoella vive Martin, como esse urso dá as caras? Na cultura dos evens, existem os miêdkas, as “pessoas marcadas pelo urso”, que carregam uma parte do bicho pela vida afora. Nesse sentido, a antropóloga estaria presa a essa espécie de feitiço.
No clima onírico da peça, Manoella é “metade mulher, metade urso”, como ela diz. Essa dualidade não se instala em metamorfoses de gosto duvidoso. Lins e a diretora de movimento Vivien Buckup orientam a atriz numa partitura de danças e gestos, que refletem essas transições do humano para o bicho.
“É uma mulher que foi atravessada fisicamente de várias maneiras: pelo urso, pelas cirurgias, pela dor. Não fazer um grande trabalho de corpo seria quase um crime, viraria um TED Talk de uma antropóloga. O corpo é tudo na peça”, afirma a diretora.
Num ranking imaginário dos ofícios mais difíceis, o ator de teatro estaria entre as primeiras posições. No caso de um monólogo, os obstáculos são ainda maiores.
No ensaio que a reportagem acompanhou, Manoella retomou a maior parte do texto da peça, que dura 70 minutos, um exercício de memória para poucos. É, no entanto, apenas uma fração do trabalho.
Caminhando sobre uma rampa coberta de uma areia escura, concebida na direção de arte de Daniela Thomas e iluminada por Caetano Vilela, a atriz precisa ficar atenta a cada um dos movimentos sinalizados por Buckup sem que isso prejudique a sua sensibilidade para interpretar, sozinha, uma montanha russa de sentimentos e sensações.
“Dá um passo a mais para direita”, pede Buckup, interrompendo o ensaio. “Vamos diminuir a luz sobre o Lúcio”, alerta Lins, fazendo nova pausa. Como um carro que breca e avança dezenas de vezes, o espetáculo ganha terreno, adicionando nuances na bagagem.
Diamant é a codiretora, um desafio para uma aprendiz, como se define. “Editar livros é uma atividade complexa, mas fazer teatro, puta que pariu! Eu não tinha essa dimensão”, conta.
Ela menciona “detalhes” para compor uma cena e logo se corrige. “Não são detalhes, são ajustes que fazem a diferença. Num determinado momento, por exemplo, se a personagem olha para um lado, é como se estivesse diante de uma certa paisagem. Se olha para outro, vê algo mais amplo, uma planície”.
O teatro tem esses prodígios. Há passagens em que o jeito como a atriz observa o horizonte leva o público a imaginar Kamtchátka, onde os termômetros costumam rondar os 30ºC negativos
Na entrevista à reportagem, a temperatura sobe quando o feminismo rouba a cena. “Essa história é uma grande metáfora da situação da mulher no mundo. A personagem se quebra inteira e tem que se reorganizar, seguir a vida”, diz Manoella, enfática. “E não fica chorando. Ao contrário, ela volta para Kamtchátka para entender o que aconteceu.”
Resta a nós, o público, concluir o que Martin terá entendido quando a cortina se fecha. A Sibéria do Sesc Ipiranga é o território da incerteza.
ESCUTE AS FERAS
Quando 11/11/2023
Onde Sesc Ipiranga – rua Bom Pastor, 822, Ipiranga, São Paulo
Preço R$ 50
Classificação 16 anos
Elenco Maria Manoella
Direção Mika Lins (codireção: Fernanda Diamant)
NAIEF HADDAD / Folhapress