SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A revisão de uma coleção de peixes do Brasil depositada em dois museus em Portugal revelou que os materiais foram preparados e descritos por um naturalista brasileiro, o frei José Mariano da Conceição Veloso (1742-1811).
Até então, acreditava-se que o naturalista luso-brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) era o responsável pela obra, datada do século 18, uma vez que ele realizou uma expedição à Amazônia brasileira no final daquele século.
A revelação, descrita em um artigo publicado no último dia 27 na revista científica Zootaxa, apresenta um panorama da ictiofauna (fauna de peixes) presente na região Sudeste mais especificamente no estado do Rio de Janeiro e da ciência brasileira no final do século 18.
“Temos, assim, um representante brasileiro da ciência com o mesmo nível [de qualidade] e mesma altura de grandes naturalistas europeus do mesmo século, inclusive com a identificação de várias espécies desconhecidas à época e que poderiam ter sido descritas por ele”, afirmou Luis Ceríaco, primeiro autor do estudo e investigador da Associação Biopolis e do Cibio-InBio (Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genético) da Universidade do Porto.
Assinam a pesquisa também Bruna Santos e Thiago Semedo, alunos de doutorado da Universidade do Porto e do Cibio, e os autores brasileiros Lucas Garcia e Cristiano Moreira, pesquisadores do departamento de Vertebrados do Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Apesar de sua importância histórica, dos mais de 700 exemplares de peixes catalogados por Veloso, 87 foram recuperados pouco mais de 10% e estão descritos em detalhes no estudo, que fez também a identificação e classificação das espécies segundo o conhecimento científico atual.
Há, ainda, o registro de espécies hoje ameaçadas de extinção ou que têm a sua distribuição geográfica restrita devido à atividade humana, como o mero (Epinephelus itajara), classificado como criticamente ameaçado pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Biodiversidade), e o peixe-papagaio (Scarus trispinosus), considerado ameaçado.
Os peixes foram conservados utilizando um método chamado de herborização (“fish herbaria”), uma forma de preservação em seco do material hoje, a maioria das coleções científicas usa preservação em álcool.
A técnica, criada pelo naturalista holandês Johan Frederik Gronovius (1690-1762), utiliza a dessecação do peixe. O método consiste em cortar um dos lados do animal para remoção da pele e vísceras, secar o outro lado para ficar como se fosse uma folha, e, por fim, colá-lo em um tipo especial de papel-cartão para conservação.
Tudo começou como parte da tese de doutorado de Ceríaco em história da ciência. Ao analisar alguns exemplares presentes em instituições portuguesas, mais especificamente o material encontrado na Academia das Ciências de Lisboa e no Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, o pesquisador desconfiava que o material não tivesse sido preparado por Alexandre Ferreira.
“Existia uma ideia de que tudo que fosse coleção zoológica ou botânica do Brasil no final do século 18 nos museus em Portugal fossem de Ferreira. Mas ele nunca havia feito a preservação dos espécimes com a técnica de herborização”, disse o autor.
O cientista foi então atrás de mais informações e encontrou uma série de cartas de Veloso em que ele explicava a técnica de preservação de herbário e alguns envios de materiais, incluindo peixes, para Portugal. É de autoria do naturalista, embora publicado postumamente, um estudo chamado “Flora Fluminensis”, em 1825, com diversos exemplares de plantas encontrados na região da serra do Mar, entre São Paulo e Rio de Janeiro.
Ao iniciar a identificação dos espécimes com a ajuda dos colegas do Museu Nacional da UFRJ, ficou claro que havia espécies encontradas somente no Sudeste brasileiro, local que Ferreira não havia visitado.
A prova cabal, por assim dizer, ocorreu quando os autores encontraram um manuscrito inacabado intitulado “Ichthyologia Fluminensis” nos arquivos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, com a descrição dos peixes coletados na época. O cruzamento dos dados com os materiais da coleção do herbário apontou uma ligação direta. “[A coleção] agora poderá ser mais bem preservada, mais bem estudada e até explorada, do ponto de vista até educacional e de extensão científica”, afirma Ceríaco.
Para Moreira, a descoberta do manuscrito inacabado na Biblioteca Nacional traz mais um elemento para a relevância científica de Veloso à época. O naturalista é conhecido como “pai” da botânica brasileira, diz.
“Agora temos um exemplo também da sua importância para os estudos zoológicos, com um conhecimento profundo da anatomia e diversidade dos peixes, apresentando informações detalhadas sobre cada um, com nome popular e em tupi antigo e sugerindo novos nomes científicos para alguns. Também tinha dados sobre pesca e distribuição geográfica. Esse trabalho ficou esquecido em algum canto e não foi usado”, disse o professor.
Esse tipo de estudo científico é, hoje, raro entre pesquisadores, que se guiam cada vez mais pelo chamado “produtivismo”, um número cada vez maior e mais rápido de publicações científicas. “Isso mostra como, muitas vezes, o trabalho dos cientistas é afetado pelo contexto político e social da época”, diz Ceríaco.
Agora, os autores pretendem trabalhar na publicação do manuscrito original de Veloso, trabalho que demandará tempo e esforço devido à condição por vezes inelegível do texto que foi digitalizado do acervo da Biblioteca Nacional e à barreira linguística o texto foi escrito em latim.
A expectativa é que com a publicação outros pesquisadores possam acessar essa informação no futuro. “Ele era um naturalista sensu latu, com um conhecimento vasto”, afirma Moreira. “Ele via a variação das espécies encontradas aqui, não foi apenas atrás de encontrar aquelas que já tinham sido descritas para o continente sul-americano por naturalistas europeus.”
ANA BOTTALLO / Folhapress