MANAUS, AM (FOLHAPRESS) – A Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) apontou uma “grande possibilidade” de presença de indígenas isolados em área com exploração de gás na região de Itapiranga (AM), a 300 km de Manaus.
A afirmação de área técnica do órgão foi feita em ofício enviado ao MPF (Ministério Público Federal) no Amazonas, que disse existir “grave e iminente risco à vida de povos isolados” em razão do empreendimento.
Diante do risco, deve haver “urgente intervenção judicial”, conforme a Procuradoria da República. Os documentos de Funai e MPF foram elaborados no último dia 1º.
A exploração de gás no chamado Campo Azulão, em Itapiranga e Silves (AM), é feita pela empresa Eneva. O insumo é levado para uma termelétrica em Roraima que é responsável por 50% da geração de energia elétrica no estado, segundo a companhia.
Em nota, a Eneva afirma que não foram identificadas comunidades indígenas ou quilombolas na área, conforme bases de Funai e Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). “Não há o que se falar de ausência de estudos indígenas ou quilombolas, pois não há previsão legal para tal”, afirma.
A assessoria da empresa encaminhou análise cartográfica da Funai, feita em 2023, que mostra a Terra Indígena Paraná do Arauató, dos muras, no rio Amazonas, como a mais próxima do Campo Azulão, a 27,85 km de distância. O território é demarcado. Outra área indígena, sem demarcação, está a 26,51 km do empreendimento, conforme o documento.
“Sempre usamos as bases oficiais. Se aparece uma informação nova, mantemos diálogo para menor impacto possível”, diz Felipe Roza, gerente de meio ambiente da Eneva.
Para o empreendimento, a Eneva -companhia que tem BTG Pactual, Cambuhy, Dynamo, Atmos e Partners Alpha em sua estrutura societária- buscou o órgão ambiental do Amazonas para a obtenção das licenças necessárias. Assim, o licenciamento foi conduzido pelo Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), não pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
No ano passado, o Ibama usou uma declaração da própria empresa para se retirar da condução do licenciamento, como a Folha mostrou em reportagem de setembro de 2023. No documento autodeclaratório, a Eneva disse que os projetos não impactam terras indígenas.
Tanto a Funai quanto o MPI (Ministério dos Povos Indígenas), porém, afirmaram que o licenciamento ignorou a presença de indígenas na região e o impacto do empreendimento às comunidades tradicionais. Os órgãos pediram a suspensão das licenças.
Já o MPF solicitou à Justiça Federal que determine a condução desses processos pelo Ibama, não pelo Ipaam.
Os indígenas precisam ser consultados, como prevê a convenção número 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), e um estudo de componente indígena -necessário quando obras impactam comunidades tradicionais- precisa ser elaborado, conforme MPF e Funai.
Agora, surgem indícios da presença de indígenas em isolamento voluntário na região. A detecção de uma família, com possibilidade de que seja de um povo isolado, foi feita pela CPT (Comissão Pastoral da Terra) de Itacoatiara (AM).
Em relatório encaminhado à Funai, a CPT descreveu um levantamento feito em agosto de 2023 sobre povos indígenas na região de Itapiranga. Além da presença em comunidades, uma equipe decidiu ampliar a incursão na região.
No rio Uatumã, 4 km floresta adentro, integrantes da CPT dizem ter se deparado com cinco indígenas, parte deles nus, ou com cipó amarrado na cabeça e na cintura. Não portavam arco e flecha, falavam na própria língua, são morenos claros com cabelos pretos, conforme o relatório encaminhado à Funai.
Entre as etnias na região, estão muras, mundurukus e gaviões.
“A Funai já havia colhido outros relatos sobre a presença de indígenas isolados na comunidade ribeirinha Jabuti, na margem direita do rio Jatapu, no interflúvio com o rio Uatumã, rio onde ocorreu o avistamento por parte dos integrantes da CPT”, afirmou a coordenação de indígenas isolados e de recente contato da Funai, em resposta a questionamentos do MPF.
“Ainda que não haja, até o momento, um registro oficial, não se pode descartar a possibilidade de se tratar de grupo até então desconhecido ou fragmento de grupo em isolamento que tenha migrado da região do Jatapu ou de outro local para a área em período mais recente”, disse a coordenação da Funai, para quem é “imprescindível” que ocorram atividades para confirmação do grupo.
Segundo o MPF, essa busca deve provocar adequações no processo de licenciamento. Qualquer extração mineral na região só deve ocorrer se houver garantia de que não existirão danos a povos isolados, conforme a Funai.
A CPT disse à Funai que existem sete aldeias em Silves, com 235 famílias; duas em Itapiranga, com 14 famílias; e uma família de indígenas isolados “avistada de forma surpreendente na floresta próximo a um dos blocos de gás em processo de exploração pela Eneva”, como consta em documento do MPF.
O procurador da República Fernando Merloto Soave, na petição enviada à Justiça, disse que o local explorado pela Eneva se sobrepõe a uma área de ribeirinhos e extrativistas, que querem criar uma reserva de desenvolvimento sustentável, a uma área de pesca com acordo homologado junto ao Ibama e também à Terra Indígena Gavião Real, em processo de demarcação junto à Funai.
O MPF pediu a suspensão imediata de todos os processos de licenciamento ambiental em curso no órgão do Amazonas, a suspensão da exploração de poços de gás e petróleo onde há sobreposição com comunidades tradicionais e a transferência do licenciamento ao Ibama.
A manifestação da Procuradoria se deu no curso de uma ação movida pela Aspac (Associação de Silves pela Preservação Ambiental e Cultural) e por representantes de indígenas muras. Segundo a ação, o licenciamento foi feito sem estudos de impacto ambiental e sem consulta a comunidades indígenas e quilombolas.
Em maio de 2023, no curso da ação, a Justiça Federal no Amazonas suspendeu liminarmente as licenças concedidas pelo Ipaam no Campo Azulão. A Eneva ingressou com recurso contra a decisão, que foi acatado pelo TRF (Tribunal Regional Federal) da 1ª Região, garantindo a validade das licenças.
VINICIUS SASSINE / Folhapress