MANAUS, AM (FOLHAPRESS) – Um parecer técnico da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) considerou inadequada a previsão expressa em contrato para que a empresa Carbonext tivesse exclusividade ”em caráter irretratável e irrevogável” na negociação de créditos de carbono eventualmente gerados na Terra Indígena Kayapó, no sul do Pará.
O documento da Funai apontou outros problemas nas negociações da empresa, que se apresenta como a maior geradora de créditos de carbono no país a partir da proteção da Amazônia, com lideranças kayapós mebengôkres.
A previsão de exclusividade era agravada pelo fato de o acordo ter sido assinado sem a existência prévia de um projeto, conforme análise da área técnica da Funai sobre os documentos da parceria entre Carbonext e indígenas.
O órgão do governo federal disse ainda que o contrato foi assinado poucos dias após uma reunião presencial numa aldeia da terra indígena. “Houve um lapso de tempo muito curto para que fosse possível considerar outras propostas, incluindo-se aqui outros tipos de arranjos para além de projetos isolados”, cita o documento.
A Carbonext ainda não havia apresentado um projeto “que demonstre a robustez da iniciativa para alcançar o seu fim, qual seja, a redução do desmatamento e degradação da TI Kayapó”, segundo a Funai.
O órgão concluiu que a coordenação regional no sul do Pará não deveria avalizar o projeto de comercialização de créditos de carbono, mesma orientação dada a outras coordenações.
O parecer é de 23 de março deste ano. Um dia antes, a Carbonext recuou formalmente da parceria, com a assinatura de um distrato com parte das lideranças envolvidas no processo.
Em nota, a empresa disse nunca ter sido notificada pela Funai sobre orientação para que as coordenações regionais do órgão não avalizassem projetos de crédito de carbono. “A Funai e a Defensoria Pública acompanharam o processo de consulta livre, assim como os advogados que representam lideranças kayapós”, afirmou.
Sobre a exclusividade, a Carbonext disse que essa é uma prática do mercado, que consta em todos os contratos da empresa. O objetivo é “garantir segurança para que a empresa possa fazer todos os investimentos para a realização e manutenção dos projetos”, conforme a nota.
“A Carbonext sempre agiu com o mais absoluto respeito aos povos originários e às leis”, disse. “Sua missão é contribuir para a conservação, restauração e desenvolvimento sustentável da bioeconomia florestal. Portanto, nunca agiu ou agirá de forma a pressionar quem quer que seja.”
A empresa desfez o trato com os kayapós após promessas de “milhões de reais” aos indígenas, de antecipação de pagamentos e de desenvolvimento de um projeto que seria um “plano de vida”.
O MPF (Ministério Público Federal) no Pará abriu em janeiro um procedimento preliminar de investigação, para acompanhar as tratativas entre Carbonext e kayapós.
O procedimento investigou suspeitas de atropelamento de instâncias; ausência de consulta livre e prévia; risco de dolo e lesão aos indígenas; e “suspeitas de açodamento e desprezo pelas instituições indígenas”.
Entre a primeira reunião com os indígenas e a assinatura de um contrato, foram menos de três meses. A Carbonext decidiu, então, abandonar a parceria, diante da necessidade de “maior segurança jurídica” para o projeto, conforme a empresa.
Com o distrato, a Procuradoria da República em Redenção (PA) arquivou o procedimento aberto.
Segundo a empresa, não houve promessas e rígidos padrões de segurança são seguidos. Após a experiência com os kayapós, a Carbonext disse ter reformulado as etapas para o desenvolvimento de projetos. A elaboração do protocolo de consulta pública, a cargo dos indígenas, passou da etapa final para a inicial.
A Terra Indígena Kayapó é a que possui mais garimpos no Brasil, levando-se em conta a extensão das áreas abertas para a exploração ilegal de ouro num território demarcado.
A reportagem da Folha de S.Paulo esteve em abril na Terra Indígena Kayapó, tanto na aldeia Gorotire, a 52 km de Cumaru do Norte (PA), quanto na aldeia Turedjam, a 20 km de Ourilândia do Norte (PA). As duas estão cercadas por garimpos ilegais, que chegaram muito próximos das comunidades.
Em ambas as aldeias, caciques e lideranças manifestaram esperança com o projeto de crédito de carbono. Eles relataram que consultas estavam em curso em outras comunidades, para validação da iniciativa. Trataram da parceria como se ela ainda existisse o distrato já havia ocorrido há quase um mês. O fim da parceria frustrou lideranças e alimentou as divisões internas entre os kayapós.
Para a Funai, o contrato assinado deveria ter contemplado a possibilidade de rescisão e repactuação periódica. Além disso, a área técnica manifestou dúvidas sobre a divisão dos créditos: 70% para os indígenas e 30% para a Carbonext. No curso das negociações, houve proposta de 80% para os kayapós e 20% para a empresa, o que não foi aceito.
“Observa-se um aumento expressivo de processos relacionados à comercialização de créditos de carbono no mercado voluntário de 2022 até o presente momento”, afirmou a Funai.
“As comunidades e lideranças indígenas de várias localidades do país vêm sendo procuradas por empresas e escritórios de advocacia com interesse em apresentar projetos e, em alguns dos casos, chegam a firmar contratos referentes à comercialização de créditos de carbono em terras indígenas”, continuou o órgão federal.
Como esse mercado ainda não está regulamentado, o que vem sendo discutido pelo governo Lula (PT), a recomendação é que a União não participe ou autorize essas negociações no momento, segundo o documento da área técnica da Funai.
Os créditos de carbono são gerados a partir de atividades que evitam desmatamento e degradação da floresta. O instrumento que permite isso é o REDD+, desenvolvido no âmbito da Convenção da ONU sobre Mudança do Clima.
Um crédito de carbono equivale a uma tonelada de CO2 que deixa de ser emitida para a atmosfera em razão do desmatamento que foi evitado. Empresas como a Carbonext atuam no mercado voluntário, em que créditos de carbono são vendidos a empresas que precisam compensar suas próprias emissões de gases de efeito estufa.
O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.
VINICIUS SASSINE / Folhapress