Fundação do Exército tem indícios contundentes de nepotismo, afirma TCU

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Uma análise do TCU (Tribunal de Contas da União) identificou “indícios contundentes” de nepotismo, acúmulo de funções e ausência de licitação na FHE (Fundação Habitacional do Exército), órgão ligado aos militares e responsável por gerir a Poupex, associação privada que atua com créditos imobiliários.

A análise cruzou os CPFs de contratados pela associação com os de integrantes das três Forças Armadas, do Comando do Exército e do Ministério da Defesa. Foram encontrados 221 casos de relação de parentesco entre as instituições.

O tribunal identificou nove casos de parentesco entre a cúpula da fundação do Exército e funcionários da associação subordinada a ela.

As informações constam em um acórdão do TCU de maio deste ano, no processo de análise das contas de 2017 da fundação.

A reportagem procurou a Defesa e o Exército, que não responderam. A Poupex afirmou que não recebe dinheiro público, que é uma empresa privada.

“Desde a sua criação, foram construídas cerca de 10 mil unidades habitacionais em todo o Brasil. A Instituição já concedeu mais de 150 mil financiamentos imobiliários, para civis e militares”, disse, em nota enviada por sua assessoria de imprensa.

“A Poupex conta, atualmente, com R$ 6 bilhões de saldo em poupança, distribuídos em 1,6 milhão de contas”, completou.

A FHE e a Poupex foram criadas no início da década de 1980, em um arranjo singular no funcionalismo público brasileiro.

A primeira é uma instituição pública de direito privado, o que significa que tem um CNPJ próprio, mas presta contas aos órgãos públicos —como o TCU. Ela tem como finalidade o financiamento de crédito imobiliário para militares.

Já a Poupex é uma empresa privada, mas que foi criada exclusivamente para atender a fundação e é gerida por ela.

Em sua defesa no processo do TCU, a Poupex alega que não precisa cumprir as regras do poder público, por ser privada, e que a FHE não recebe recursos públicos.

Em seu voto, o relator Marcos Bemquerer Costa questiona essa separação, uma vez que o quadro de servidores da FHE é composto apenas por sua direção e seu conselho administrativo, e toda a operação é pela Poupex.

Por isso, ele entende que, ao cabo, a empresa privada acaba prestando o serviço público.

“A Poupex é o corpo que personifica a existência da FHE, e que não existe de fato a distinção da personalidade jurídica das duas entidades, inviabilizando a supervisão que a segunda deveria exercer sobre a primeira”, diz, em seu voto.

“A simbiose entre as duas entidades vem sendo praticada ao longo de décadas com base em argumentos de conveniência e oportunidade, sem que a lei tenha conferido tal poder discricionário àquela entidade, que se esquiva dos deveres legais de seleção de pessoal, mediante concurso público, e de aquisição, mediante processo licitatório […] e infringe os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade administrativa”, completa.

O levantamento do tribunal mostra que 50% das 221 relações de parentesco entre funcionários da Poupex e membros das Forças Armadas e da Defesa é com militares de alta patente —de coronel para cima.

Também aponta quase cem casos de pessoas contratadas pela Poupex e que constavam nas folhas de pagamento das Forças Armadas ou da Defesa —considerando a relação de pessoal de 2020.

Calcula o tribunal que, portanto, 316, “ou 24,2% dos 1.306 funcionários da Poupex, possuem vínculo direto com as Forças ou indireto”.

O TCU ainda aponta que o parentesco mais comum é o de pai, que corresponde a 28% dos casos, seguido pelo de tio, 22%. Dos 9 casos de funcionários da Poupex familiares de membros da FHE, 3 são filhos, três são sobrinhos, um é irmão e outro é sobrinho irmão.

O órgão de controle ainda questiona o fato de que conselhos e direções das duas instituições são compostos majoritariamente por militares, sendo que elas não são organizações militares.

O tribunal aponta ainda que os mesmos nomes ocupam a direção tanto da Poupex quanto da fundação, mas enquanto o salário da fundação é de cerca de R$ 17 mil, o da associação privada, em 2019, era de mais de R$ 9 mil, além de quase R$ 1.500 mil em auxílios.

Em 2017, foram pagos pela FHE à associação de poupança quase R$ 210 milhões para emprego de pessoal e quase R$ 35 milhões em gastos com informática, em valores da época.

O tribunal questiona que, “embora [a FHE] não seja mantida com recursos financeiros do Orçamento Geral da União”, ela recebeu o equivalente a R$ 37 milhões em permutas com o Comando do Exército e “desfruta, no seu relacionamento com a União, de privilégios não disponíveis a entidades privadas que exercem atividades de mesma natureza”.

Na opinião do relator, a apuração aponta fatos “contrários à legislação, mas que não ensejam censura à atuação dos gestores da FHE, porque respaldada no texto do estatuto da entidade”, que prevê tal organograma.

Por isso, o tribunal recomenda uma série de ajustes aos pontos do estatuto que contrariam leis.

Yohann Sade, da Sade & Gritz Advogados e especialista em direito administrativo e regulatório, pondera que, “mesmo que haja uma evidente ‘mistura’ de regimes públicos e privados”, o caso pode demonstrar uma exceção à regra, pelo fato de que a relação entre as entidades é singular dentro do funcionalismo.

Raphael De Matos Cardoso, mestre em direito administrativo e sócio do Marzagão e Balaró Advogados, diz que é justamente neste sentido que o TCU “determinou que cabe à FHE compatibilizar o estatuto da Poupex”.

Sade ressalta, no entanto, que “como a estrutura da Poupex é que justifica, hoje, a existência funcional da FHE, é evidente que, neste aspecto, não estão sendo cumpridos deveres legais de seleção de pessoal, mediante concurso público”.

“O corpo de funcionários da FHE se confunde com o da Poupex, de modo que, obviamente, há a obrigatoriedade de observância das normas relativas ao nepotismo”, avalia.

Cardoso pondera que não há previsão no direito privado para nepotismo, apenas no público. “O que pode acontecer é o conflito de interesses. No âmbito privado deve existir uma avaliação à integridade, compliance”, completa.

JOÃO GABRIEL / Folhapress

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