Futuro de Milton Leite, soberano da Câmara Municipal de SP, intriga política paulista

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando Milton Leite assumiu seu primeiro mandato como vereador na Câmara de São Paulo, em 1997, quem comandava a cidade era Celso Pitta. Sete outros prefeitos depois, ele continua lá. Acumulou exponencialmente votos e poder. Nunca foi oposição.

Aos 68 anos, está no sétimo mandato seguido. E no sexto como presidente da Casa, sendo os quatro últimos consecutivos, o que só conseguiu depois de mudar as regras: o mandato presidencial é de um ano, e era permitida apenas uma reeleição -após as alterações, ele foi reeleito três vezes.

Ninguém, desde a redemocratização, esteve tanto tempo à frente do Palácio Anchieta.

Apontado como a figura mais influente na administração da cidade, o vereador do União Brasil intrigou a política local ao anunciar, em setembro 2022, que pela primeira vez em 30 anos não disputaria uma eleição proporcional. Parece bravata, e talvez seja mesmo, mas até aqui ele se mantém irredutível.

Ofereceu-se como candidato a vice na chapa do prefeito Ricardo Nunes (MDB). Pouca gente leva a sério, uma vez que, na presidência da Câmara, tem e continuaria a ter bem mais poder. Hoje sua chance de êxito na empreitada é mínima.

Em meio a tanta névoa, Leite foi arrolado como testemunha, junto com o deputado federal Jilmar Tatto (PT), em investigação sobre a ligação de empresas de ônibus com a facção criminosa PCC, a Operação Fim da Linha.

São notórias as relações de Leite e da família Tatto com o movimento de perueiros da zona sul desde a virada dos anos 1990 para os 2000. Na época, esses grupos faziam campanha para ambos, que por sua vez defendiam a regularização das lotações, e já havia suspeitas de ligação do PCC com líderes do setor. Foi a partir de cooperativas de transporte alternativo que nasceram a Transwolff e a UPBus, acusadas pela Fim da Linha de terem sido usadas para lavar dinheiro do tráfico.

Em 2006, o Ministério Público abriu um procedimento para investigar o contrato entre uma empreiteira de Milton Leite (a Lisergo) e a Cooperpam, que mais tarde se fundiu à Transwolff: o dirigente das duas era Luiz Carlos Efigênio Pacheco, o Pandora, preso na Fim da Linha. O valor foi de R$ 7 milhões (R$ 23 milhões em valores atualizados), para a Lisergo construir uma garagem da cooperativa.

Leite disse na ocasião que o contrato era legal e que a Cooperpam lhe devia metade do valor contratado. O caso foi arquivado.

Promotores da Fim da Linha afirmam não terem consultado a investigação de 2006. A reportagem solicitou acesso os documentos, mas o MP-SP disse que eles não foram localizados.

Leite, que havia concordado em dar uma entrevista de viva voz para esta reportagem, desistiu depois da eclosão da Fim da Linha, solicitando que questões fossem enviadas por escrito. Indagado se teme o desfecho do caso e sobre sua relação com Pandora, o vereador não respondeu: “Como fui indicado como testemunha, só posso falar nos autos”.

Nunes e Leite são aliados de ocasião. A sombra que o vereador projeta sobre a prefeitura é um incômodo para o candidato à reeleição.

“Milton Leite manda em tudo. Os prefeitos, para fazer qualquer coisa, têm de pedir licença a ele. É um poder quase imperial”, afirma o ex-vereador Gilberto Natalini, que exerceu cinco mandatos seguidos na Câmara -primeiro pelo PSDB, depois pelo PV.

“Milton Leite é o verdadeiro prefeito. Nada importante passa [na Câmara] sem a anuência dele. Se o Milton decidiu que alguma coisa vai passar, passa”, diz a vereadora Luna Zarattini, do PT, que faz oposição a Nunes e Leite, mas mantém boa relação com o presidente da Casa.

As assertivas de Natalini e Luna são repetidas quase como um axioma por políticos de todos os matizes, mas os governistas só a proferem à boca miúda. “Não é verdade, o prefeito é Ricardo Nunes e seguimos as orientações dele”, desconversa Leite.

Desde a aprovação do Orçamento da prefeitura e de projetos estratégicos, como o Plano Diretor, passando pelo aval à privatização da Sabesp, tudo depende do crivo da Câmara -ou de Leite, que tem ascendência sobre quase a totalidade dos 55 vereadores. A oposição tem 16 integrantes, mas às vezes até o PT, maior partido do bloco, com nove representantes, vota com ele -apoiou suas reeleições.

A recente implantação do passe livre aos domingos nos ônibus da cidade, que onera ainda mais os cofres públicos em relação aos subsídios bilionários já pagos pela Prefeitura às empresas, é outro exemplo da ascendência do chefe da Câmara. O setor de transportes é há anos uma das áreas de influência de Leite.

Nunes relativiza o poder do aliado e, nos bastidores, avalia que Leite infla seu próprio cacife: diz que não endossa sempre os projetos aprovado na Casa e que o vereador ficou na vontade quando quis emplacar um dos seus filhos como conselheiro do Tribunal de Conta do Município. A namorada do filho acabaria assumindo um cargo no TCM.

Mas o prefeito também destaca o sucesso da parceria com Leite na aprovação de pautas como a reforma da Previdência municipal e a tarifa zero.

A escolha do vice deve passar por aliados como Jair Bolsonaro (PL), o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Gilberto Kassab (PSD), secretário estadual de Governo. Nenhum deles apoia Leite como vice, e quase todos têm reservas (ou até antipatia) ao presidente da Câmara.

Embora se juntem em pautas de interesse do governo estadual, Kassab e Leite ainda mantêm cicatrizes da derrota que o primeiro, então prefeito, impôs ao segundo em 2010.

Mesmo sendo na época do mesmo partido que Leite (o DEM), Kassab o preteriu por Police Neto (então no PSDB), que venceu por margem apertada. Foi uma disputa figadal, com aliados de Leite tendo até espancado vereadores que migraram para Police. Numa amostra do DNA político de Kassab e Leite, no dia seguinte à eleição, eles almoçaram para acertar os ponteiros.

A contenda com Police se estendeu por anos.

Sobre o poder do desafeto, Police afirma que, “na prática, o Orçamento do Ricardo [Nunes] é menor do que os dominados pelo Milton Leite”. Refere-se à influência de Leite sobre contratos de obras, lixo e transportes e sobre a verba de programas bilionários do Executivo como o Mananciais.

Voltado à urbanização e regularização fundiária na região das represas Guarapiranga e Billings, o programa prevê R$ 2,7 bilhões em obras no período 2021-2024.

Seja com verba do Mananciais, de emendas parlamentares suas e de seus filhos -o deputado estadual Miltinho e o deputado federal Alexandre Leite-, ou de recursos da prefeitura para intervenções locais, a família do presidente da Câmara é mais atuante em bairros pobres da zona sul, patrocinando obras urbanas. Há logomarcas da família sobretudo em áreas de lazer.

Leite controla as subprefeituras de M’boi Mirim, Parelheiros (ambas na zona sul), Guaianazes (zona leste) e Jaçanã (zona norte).

Há anos um baluarte do chamado centrão paulistano, ele começou a carreira política no final dos anos 1970 no PCB, à época abrigado no velho MDB. Natalini, que era do PC do B e também militava na zona sul, o conhece dessa época. “Eu tinha 58 kg, ele era mais magro do que eu”, relembra o ex-vereador.

Disputou sua primeira eleição em 1994, para deputado federal. Não se elegeu, mas, a partir da disputa seguinte, em 1996, emendou vitórias.

Uma rara derrota veio no ano passado, quando compôs a chapa que concorreu à presidência do Corinthians. Rendeu ao vereador a abertura de uma investigação no Ministério Público para apurar se ele usou a estrutura da Câmara para intimidar um rival na eleição do clube. A Promotoria também investiga Leite e seu filho Miltinho por denúncias de rachadinha.

Desde cedo Leite ocupou cargos estratégicos na Câmara. No primeiro mandato, foi vice-presidente da Mesa Diretora e relator da CPI da Máfia dos Fiscais -à época dominava a administração regional (como eram chamadas as atuais subprefeituras) de Santo Amaro, uma das áreas de atuação da Enterpa, empreiteira investigada por pagar propina a funcionários públicos, e defendeu a absolvição da empresa.

Mesmo os adversários políticos o reputam como muito inteligente, trabalhador, perspicaz e cumpridor de acordos. Na eleição de 2004, o PMDB integrava a base da prefeita Marta Suplicy, e Leite se comprometeu com o PT a apoiar a reeleição dela. Os petistas, porém, se recusaram a dar a vice da chapa ao partido aliado, e o PMDB acabou desistindo da composição.

Mas Leite se manteve fiel ao combinado inicial, e fez campanha pela reeleição de Marta à revelia do comando do partido. “Ele é um cara de palavra, que cumpre os acordos”, afirma o deputado federal Rui Falcão (PT), que foi o vice de Marta naquela disputa.

O poder crescente de Leite na Câmara foi turbinado com a ascensão de João Doria, que assumiu a prefeitura em 2017. Novato na política, o empresário entregou ao vereador a sua articulação política na Câmara.

Leite foi eleito presidente pela primeira vez, e reeleito para 2018. Quando Doria virou governador, o aliado passou a controlar cargos em órgãos estaduais sobretudo nas áreas de transporte e habitação.

Leite também tem um lado empresarial, que precede sua vida política. Sobre isso, se resumiu a dizer que seu primeiro emprego foi de entregador de pães aos 9 anos de idade e que iniciou as atividades empresariais em 1978.

Quem conhece os primórdios da sua trajetória conta que ele montou uma pequena empreiteira e, com auxílio de aliados políticos, conseguiu que a firma fosse subcontratada de construtoras maiores ou firmasse contratos públicos (o que ele sempre negou) e privados em cidades na região metropolitana de São Paulo. Desde essa época, nos anos 80, já dirigia uma Mercedes.

Leite tinha 40 anos quando foi eleito em 1996 para o primeiro mandato e já era, em suas próprias palavras, “muito bem estruturado”. “Aliás, a Câmara atrapalhou alguns progressos que eu poderia ter feito na minha vida profissiona”, afirmou -um dos entraves seria não poder fazer obras públicas.

Preferiria, segundo relata, ter se mantido só com os negócios, mas afirma que cedeu a apelo de correligionários, “para que os grupos políticos da zona sul tivessem uma representação”.

Agora, promete que, se não for vice de Nunes, abandonará a política para cuidar dos negócios. Em sociedade com a esposa e três dos cinco filhos -incluindo os dois políticos-, possui uma construtora (Neumax) e uma empresa de perfurações e sondagens (Lesimo).

Em 2020, declarou à Justiça Eleitoral bens avaliados em R$ 3,6 milhões -sendo R$ 150 mil em espécie. É há anos é o vereador com a campanha mais cara em São Paulo.

Leite se negou a dar informações sobre suas empresas. A reportagem apurou que uma das joias da coroa do grupo é o loteamento Jardim Nathália, em Sorocaba. Conforme a matrícula do imóvel, o terreno de 743 mil m², com espaço para 2.076 lotes, foi adquirido pela Neumax em 2010 à construtora Construbase por R$ 3,1 milhões -embora o valor venal fosse R$ 6,8 milhões.

Quatro anos depois, a Neumax hipotecou 40,7% da área, sendo 31,2% à Prefeitura de Sorocaba, no valor de R$ 10 milhões; e 9,5% ao Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Sorocaba, no valor de R$ 3,29 milhões.

O loteamento recebeu o prenome da mãe de Milton Leite. Nathália Pereira da Silva, que morreu em 2020, também já foi homenageada em pelo menos duas obras públicas em São Paulo, um viaduto e uma creche, ambos na zona sul. É apontada pelo vereador como uma das suas grandes referências na vida -na política, esse lugar cabe a Ulysses Guimarães.

A anunciada aposentadoria política de Milton Leite é vista com desconfiança porque ele goza um dos momentos de maior poder. Se é verdade que por um lado perdeu cargos no governo de São Paulo após a chegada de Tarcísio e Kassab , por outro expandiu sua influência estadual no União Brasil.

Um dos caciques do PL, o deputado federal e ex-vereador Antonio Carlos Rodrigues -de quem Leite herdou a liderança do centrão paulistano e a influência sobre contratos de obras e transportes- apoia o colega.

“Se depender de mim, terá todo o apoio [para ser vice de Nunes]. É a peça que falta para consolidar a eleição do Ricardo.” Mas e se não for, acredita que ele deixará mesmo a política? “De jeito nenhum. Sairá para [deputado] federal ou senador em 2026.”

Quem também duvida é Luna Zarattini. “Acho que ele morreria. Ele respira isso daqui.”

FABIO VICTOR / Folhapress

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