BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Alvo preferencial da revisão de gastos defendida pela equipe econômica, a Previdência Social terá um aumento de ao menos R$ 100 bilhões em suas despesas nos próximos quatro anos devido à política de valorização do salário mínimo instituída pelo próprio governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Em dez anos, o impacto será ainda maior e chegará a R$ 550 bilhões, segundo cálculos do economista Fabio Giambiagi, pesquisador associado do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas). Para ele, o efeito prático da regra anula boa parte do ganho conquistado com a reforma da Previdência de 2019.
No ano que vem, as despesas com benefícios previdenciários (sem incluir sentenças judiciais) devem beirar os R$ 972 bilhões, segundo estimativas preliminares do governo. O valor ainda não considera potenciais economias com revisão de benefícios.
Só o ganho real do salário mínimo é responsável por cerca de R$ 12 bilhões do aumento. O impacto da regra é crescente ao longo dos anos e, de acordo com parâmetros do próprio Executivo, pode somar R$ 131 bilhões entre 2025 e 2028.
No ano passado, Lula propôs e o Congresso aprovou uma fórmula permanente de correção anual do salário mínimo.
O modelo prevê o reajuste pela inflação medida pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) em 12 meses até novembro do ano anterior, mais a taxa de crescimento real do PIB (Produto Interno Bruto) de dois anos antes.
Neste ano, por exemplo, o piso teve uma expansão de 3% acima da inflação. Em 2025, o ganho real será de 2,9%, mesma variação do PIB observada no ano passado.
Trata-se da mesma fórmula adotada em outras gestões do PT. No governo de Jair Bolsonaro (PL), o salário mínimo teve reajuste apenas pela inflação.
Lula e integrantes da equipe econômica argumentam que a regra busca ampliar o poder de compra dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, reduzir desigualdades.
Já os economistas e até mesmo alguns integrantes do governo ponderam que é preciso enfrentar o debate da consequência da regra sobre a trajetória de gastos. Dois terços dos benefícios previdenciários equivalem a um salário mínimo. Eles representam quase 44% da despesa total.
Além de criar desafios para a Previdência, a expansão pressiona o limite do novo arcabouço fiscal, que cresce em ritmo mais lento (até 2,5% acima da inflação).
Na visão de um desses integrantes do governo, não se trata de impor soluções extremas, como o fim da valorização real ou a desvinculação dos benefícios, mas discutir saídas intermediárias como um reajuste real mais moderado.
“Essa mudança da regra tem efeitos absolutamente devastadores para o futuro da Previdência Social”, afirma Giambiagi à reportagem. Segundo ele, a nova regra do salário mínimo desloca para cima a curva de gastos do INSS (Instituto Nacional de Seguro Social), que já era crescente mesmo com a reforma da Previdência.
“A reforma de 2019 não foi feita para reduzir a despesa do INSS. Todo mundo sabia que a despesa do INSS continuaria a aumentar”, diz o economista. Ele também questiona a eficácia dessa política no atual estágio do mercado de trabalho.
Para ele, o governo terá de recuar mais cedo ou mais tarde e rever o modelo de correção a partir de 2026, apesar do discurso contrário do governo.
O economista Heron do Carmo, professor da FEA-USP (Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária, da Universidade de São Paulo) entende que a indexação do salário mínimo e da Previdência é importante, mas o ganho real deveria ser menor. “Talvez fosse mais razoável reajustar de acordo com o crescimento do PIB per capita, que está mais próximo da produtividade”, diz.
Lula já avisou aos ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento e Orçamento) que não aceita mudanças na política de valorização do mínimo, nem desvincular os benefícios. Ele também manifestou publicamente essa posição nesta quarta-feira (27), em entrevista ao portal UOL.
Integrantes da equipe econômica ecoaram a orientação do presidente. “A despesa pública não é determinada só pela variação do salário mínimo. Obviamente ela é importante, mas é um componente social importante. Dado que o governo entende que ele é um componente central, precisamos adequar a condução da política fiscal a esse pilar”, disse o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, também na quarta.
Ele negou que, sem mudar a política do salário mínimo, o governo ficará “enxugando gelo” com outras medidas para conter despesas enquanto o piso impulsiona os gastos da Previdência em igual ou maior medida.
Depois de passar um ano e meio sem focar na agenda de corte de despesas, as equipes da Fazenda e do Planejamento se uniram para apresentar ao presidente um cardápio de medidas.
Nas últimas reuniões com os ministros da JEO (Junta de Execução Orçamentária), a orientação de Lula a Haddad e Tebet é que as propostas tenham foco na responsabilidade social e não atinjam os mais pobres.
Giambiagi avalia que Lula é vítima do que classifica como restrições autoimpostas. Além de propor a política de valorização do salário mínimo, não aproveitou a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) aprovada na transição de governo para buscar uma solução para a correção dos pisos da saúde e educação.
” [A política de valorização] O salário mínimo simplesmente era um assunto que não estava em pauta. Ninguém tratou do assunto durante seis anos. Bolsonaro, com todas as atrocidades que falou durante quatro anos, teve 49% e tantos de votos sem dar um único aumento real do salário mínimo, fora o período do governo Temer”, diz
O economista avalia que ninguém no futuro deixaria de votar em Lula ou no PT pela questão do salário mínimo. “Era uma não questão que o presidente Lula, preso a uma concepção antiga, colocou gratuitamente na mesa com um efeito devastador”, afirma.
Para ele, uma saída seria Lula dizer que cumpriu a palavra com aumentos importantes durante três anos e, daí em diante, mudar a regra.
Giambiagi avalia ainda que a estratégia de Haddad para a revisão de gastos está confusa. Na sua avaliação, falta um roteiro que aponte o caminho de onde o governo está aonde se quer chegar.
“Em qualquer negociação política, você tem que fazer alguns atalhos, algumas mudanças de rota. Mas tanto ele [Haddad] como a ministra Simone estão soltando assuntos sem a menor base e sem a menor discussão”, afirma o economista. Ele chama esse processo de hiperatividade paralisante.
Em recente debate organizado pelo FGV Ibre, o diretor-presidente do IMDS (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social), Paulo Tafner, chamou a atenção para um fator complicador para as contas da Previdência: a trajetória de envelhecimento mais acelerada do que o previsto inicialmente, segundo os dados do Censo Demográfico 2022.
“Teremos pela frente desafios maiores do que aqueles originalmente imaginados quando da reforma de 2019”, alertou Tafner.
Para ele, além do problema demográfico, os desafios do mercado de trabalho serão bastante intensos diante do cenário de erosão do financiamento tradicional da Previdência no Brasil.
A redução da taxa de fecundidade no Brasil, menor do que a de países da Europa Ocidental, também é fator adverso para as contas da Previdência. “A população vai entrar em declínio muito antes do que imaginado”, disse. “Já na década de 30, a população vai começar a atingir o máximo e depois começa a declínio.” Se isso se concretizar, seriam sete anos antes do que estava previsto pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
ADRIANA FERNANDES E IDIANA TOMAZELLI / Folhapress