SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) criou um programa de incentivo à produtividade policial que prevê recompensas aos policiais militares que conseguirem convencer usuários de drogas que frequentam a região da cracolândia a se internarem.
Quando aceita, o dependente químico é levado no carro da própria polícia ao centro estadual de tratamento a dependentes químicos na Luz, no centro da capital, e o policial ganha pontos que, acumulados, podem ser convertidos em folgas no final de cada mês.
– Internações sem consentimento aumentam na cracolândia, em meio a denúncias de agressões
A concessão de benefícios foi iniciada em maio deste ano, segundo policiais ouvidos pela Folha de S.Paulo, e se baseia em uma tabela de pontos atribuídos a ações recorrentes da rotina policial.
Abordagens pessoais, por exemplo, valem 0,20 ponto. A condução de um usuário para o centro de tratamento estadual vale 15 pontos, mais do que a prisão de um procurado pela Justiça, avaliada em 10 pontos. A cada 100 pontos acumulados, o policial tem direito a um dia de folga remunerada. A apreensão de uma arma longa (como fuzil) rende 1.000 pontos, ou dez folgas de uma só vez
Ainda conforme policiais ouvidos pela reportagem, o programa tem levado alguns PMs a forçarem a internação de dependentes com ameaças ou levarem pessoas em surto, não necessariamente causados por drogas, ao equipamento de saúde de onde são encaminhados para internações involuntárias.
Os casos de internação involuntária também valem pontos, conforme os policiais ouvidos.
Especialistas ouvidos pela reportagem criticaram o programa adotado pelo governo paulista, apontando como contraproducente e antiprofissional.
Procurada, a gestão Tarcísio afirmou que, neste ano, policiais passaram por um curso de capacitação para “o atendimento a pessoas em situação de vulnerabilidade” como uma forma de contribuir para a requalificação da região central. Os policiais que participam desse programa recebem bolsa de R$ 1.200 por mês. “O incentivo contribui para a valorização e o reconhecimento do empenho dos policiais que atuam no centro da capital”, diz trecho da nota.
A PM não confirma nem nega o sistema de concessão de folgas por meio de pontos. Diz, apenas, que as irregularidades apontadas pela reportagem serão apuradas.
Em junho, conforme planilha a qual a Folha de S.Paulo teve acesso, dois soldados ocuparam o topo do ranking ao acumular mais de 300 pontos no mês e, assim, conquistaram três dias de folga. No total, ao menos 36 policiais atingiram a meta de acumular, no mínimo, 100 pontos.
Para validar os pontos, no caso das internações, o PM precisa registrar o encaminhamento por mensagem de texto no grupo de PMs chamado internamente de resenha e tirar uma foto ao lado do usuário com o logo do Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas ao fundo.
A reportagem teve acesso a 42 fotos desse tipo. Uma das resenhas às quais a Folha de S.Paulo teve acesso, assinada pelos soldados Juan e Luciano (os recordistas de junho), os PMs afirmam que estavam em patrulhamento pela região quando abordaram um morador de rua.
Em conversa com a equipe, o homem disse ser dependente químico há sete anos. “A equipe o informou e orientou sobre o programa de acolhimento do governo oferecido pelo Hub. Ao tomar ciência, ele demonstrou interesse no tratamento, e a equipe prontamente realizou apoio na condução até o Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas do governo de SP”, diz trecho.
Na mesma noite, em 20 de junho, há registro de outras duas internações voluntárias encaminhadas pelos mesmos PMs para o centro de referência.
Para o coronel reformado da PM paulista José Vicente da Silva, especialista em segurança pública, esse método de incentivo policial adotado pela gestão Tarcísio é ultrapassado e remete aos anos 1930.
Além disso, segundo ele, há dois problemas de conceito: um deles é premiar o policial para fazer um trabalho pelo qual é obrigado e, outro, dar folga para quem trabalha bem. “Você não pode incentivar o trabalho dando fuga do trabalho. Se trabalhar bastante, vou deixar você sem trabalhar. Não tem sentido.”
O PM também não pode, segundo ele, substituir o trabalho de profissionais da saúde. Deve acompanhá-los, ao lado de outros agentes com capacidade de manejar o quadro. “Eu acho um absurdo”, disse.
A socióloga Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, também criticou a iniciativa da gestão Tarcísio. Para ela, parece um “catadão” de incentivos misturados para lidar com o tráfico e com o usuário ao mesmo tempo. “A gente não tem clareza de qual é a política de drogas do estado para lidar com a cracolândia, para lidar com o usuário, para lidar com o programa de internação”, disse.
Ainda segundo ela, toda vez que um governo cria incentivos com bônus financeiro ou folgas para aumentar a produtividade policial, é necessário criar ferramentas para tentar frear um fenômeno conhecido “gaming” (jogar, da tradução do inglês).
“O operador aprende a jogar e aprende a burlar. Isso em qualquer área. Você paga bônus. Então, quando coloca indicador de produtividade atrelado a alguma recompensa, você precisa ter mecanismos ‘anti-gaming’ para evitar que isso aconteça. Qual é o mecanismo ‘anti-gaming’, anti-burlação que a polícia militar e o governo vão propor?”, questiona a socióloga.
Uma das estratégias de convencimento dos policiais para levar o usuário ao Hub é dizer que terão prioridade nos encaminhamentos para as internações. Pacientes que buscam tratamento voluntariamente costumam ser orientados a voltar dias depois para conseguir uma vaga devido à alta demanda por leitos psiquiátricos em hospitais e comunidades terapêuticas.
Na prática, porém, os dependentes levados pelos militares entram na fila de triagem e aguardam como os demais, segundo funcionários do Hub.
Há também relatos de enfermeiros que afirmaram terem presenciado chegadas de dependentes químicos em surto que saem do carro policial direto para o setor de emergência do Hub. Nesses casos, a ficha do paciente conta a observação “ação policial” e, após a avaliação dos médicos, é indicada a internação involuntária, prioritariamente.
Agentes de saúde do Hub afirmam que, nessas situações, não é feita qualquer tipo de avaliação para comprovar que a crise psiquiátrica é derivada de uso abusivo de drogas ou de outra patologia. Mesmo assim, o paciente é registrado como usuário.
Os policiais também coletam o nome e o registro profissional dos enfermeiros que recebem o paciente.
Procurada, a Secretaria Estadual de Saúde, responsável pelo contrato de gestão do Hub, informou que todos os pacientes passam por triagem e avaliação médica para formulação do plano terapêutico e os casos de maior risco têm prioridade no atendimento.
A Folha de S.Paulo solicitou à PM acesso aos soldados Juan e Luciano, mas o pedido não foi atendido.
ROGÉRIO PAGNAN E MARIANA ZYLBERKAN / Folhapress