SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Golpes de Estado têm deixado de depender de tanques nas ruas e de deposição de presidentes –atualmente, sobram exemplos de países que testemunharam a corrosão de suas instituições internamente, por meio de brechas aproveitadas por líderes populares que não respeitam as regras da democracia.
A moda antiga, porém, ainda se aplica em algumas regiões do mundo. Na África, militares rebeldes anunciaram a tomada de poder em anúncios televisionados em duas ocasiões ao longo de 2023.
As cenas consolidam uma tendência dos últimos cinco anos no continente. Nesse período, aconteceram 11 golpes na região, a maioria na porção conhecida como Sahel, faixa entre o deserto do Saara e as savanas ao sul marcada, em grande parte, pelos impactos da pobreza extrema.
A primeira insurreição militar exitosa no continente em 2023 foi nessa região. No fim de julho, o coronel Amadou Abdramane se cercou de nove homens fardados diante das câmeras para anunciar um golpe no Níger, em declaração transmitida pela televisão estatal do país. Seu objetivo, afirmou ele na ocasião, era “colocar um ponto final no regime que deteriorou a segurança nacional devido à má gestão”.
Adbramane se referia indiretamente à crise social enfrentada pelos países nessa região após a chegada de grupos jihadistas na década passada –movimento que assustou potências europeias. Em 2014, a França, que colonizou diversos países africanos no passado, lançou a operação Barkhane para combater a ameaça, mas ela foi encerrada, com poucos êxitos, antes de completar dez anos.
Diferentemente de líderes de outras nações vizinhas, como Mali e Burkina Fasso, que levam a cabo operações antiterroristas acusadas de terem um custo muito alto para civis, o agora ex-presidente do Níger Mohamed Bazoum vinha promovendo acordos de paz e fazendo tentativas de negociação com chefes de grupos armados, o que era visto com desconfiança pela população.
Eleito no que parecia o início de uma transição democrática, Bazoum está desde então preso na residência presidencial, junto com sua família.
De acordo com o Partido Nigerino para o Socialismo e Democracia, que o político preside, e parentes próximos, eles não têm acesso a água corrente e eletricidade, o que a junta militar no poder nega. Dias depois, a filha de Bazoum, Zazia, disse ao jornal britânico The Guardian que seu pai perdia peso rapidamente e estava em condições desumanas.
“Nos últimos anos, vínhamos prestando mais atenção à erosão democrática, porque era o que estava acontecendo com mais intensidade”, afirma Emilia Simison, doutora em ciência política no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês). “Mas penso que 2023 nos mostrou que os golpes ainda estão vivos.”
Em agosto, foi a vez de o Gabão, na região central da África, ser palco de um golpe de Estado nos mesmos moldes do ocorrido no Níger. Naquele mês, um grupo de oficiais das Forças Armadas foi à TV declarar a ruptura institucional após a divulgação dos resultados das eleições gerais.
Nesse caso, porém, o movimento tirou do poder uma família que governou o país nos últimos 56 anos –Omar Bongo se manteve no poder por 42 anos, até sua morte, em 2009, e foi sucedido por seu filho, Ali. O herdeiro do ditador foi retirado por uma junta militar que, por sua vez, planeja incertas eleições apenas para 2025.
Os opositores costumavam dizer que o clã Bongo pouco fez para compartilhar a riqueza petrolífera do país aos cerca de 2,3 milhões de habitantes e acusavam os líderes de corrupção. Ao dar o golpe, os oficiais afirmaram estar colocando “fim ao regime” responsável por afundar a nação em uma “grave crise institucional, política, econômica e social”. Bongo chegou a ser mantido em prisão domiciliar após a ruptura, mas foi solto dias depois.
O desapreço pelo regime da família pôde ser visto pela reação de parte da população ao pedido de Ali para que seus apoiadores “fizessem barulho” contra o golpe –o clamor foi respondido por vídeos virais de gaboneses dançando ao som de músicas animadas.
Embora, nesse caso, a insatisfação se volte contra uma ditadura, no golpe do Níger, por exemplo, parte da população saiu às ruas para comemorar a deposição de um presidente democraticamente eleito. Simison vê esse desprezo pelas instituições como uma tendência mais generalizada, que se repete em outras partes do mundo.
Segundo ela, a ideia de que tudo é melhor sob a via democrática é perigosa, já que é mais passível de desilusões. “A democracia vai parecer inútil se você disser às pessoas que tudo vai melhorar com ela e isso não acontecer”, afirma a pesquisadora.
“Há muitas coisas que melhoram com a democracia, como os direitos individuais, os direitos civis, a proteção dos direitos humanos”, diz ela. “Mas ela não melhora necessariamente a economia da noite para o dia.”
Nas últimas semanas, outras movimentações no continente africano indicaram a possibilidade de mais instabilidade política em 2024. No dia 1º de dezembro, o líder da Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló –admirador do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que já o chamou de “Bolsonaro da África”–, dissolveu o Parlamento do país depois de uma tentativa de golpe frustrada de militares rebeldes, segundo ele.
O país da África Ocidental, palco de vários golpes de Estado desde 1974, quando conquistou a independência de Portugal, ainda não tem data para novas eleições legislativas.
DANIELA ARCANJO / Folhapress