Governo cita arquivamento de processo sobre UFSC, mas ignora outras irregularidades

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou recentemente que tomaria medidas disciplinares contra policiais após o TCU (Tribunal de Contas da União) arquivar um processo sobre possíveis desvios de verba na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). As declarações, no entanto, ignoram que outro procedimento aberto pelo tribunal identificou irregularidades em repasses de recursos para bolsas na instituição de ensino.

Os dois temas tratam da aplicação de recursos para a execução de cursos a distância por meio do programa UAB (Universidade Aberta do Brasil), criado em 2006 pelo governo federal. Ambos também foram objeto de investigação da operação Ouvidos Moucos da PF (Polícia Federal), que teve seus métodos criticados.

Durante o caso, o então reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, cometeu suicídio dias após ser libertado da prisão —ele também tinha sido afastado do cargo. O professor não era suspeito de desvios, mas sim de tentar obstruir investigações internas da universidade, o que ele sempre negou.

No processo arquivado neste mês, o TCU verificou que não foi possível firmar convicção sobre o possível superfaturamento de R$ 43 mil num contrato de locação de veículos firmado pela universidade para o programa.

De acordo com documento assinado pelo auditor federal de controle externo Leandro Santos de Brum em 2 de junho, não há segurança razoável para concluir pela existência de superfaturamento, “imputação de extrema gravidade”.

“[A imputação] requer evidências concretas e prudente análise, ante os impactos de uma eventual responsabilização de pessoas físicas e jurídicas”, disse.

Após a decisão do tribunal, porém, Dino disse que, “com base na decisão do TCU sobre as alegações contra o saudoso reitor Luiz Carlos Cancellier, da UFSC”, iria “adotar as providências cabíveis em face de possíveis abusos e irregularidades na conduta de agentes públicos federais”.

Dino também determinou à PF a instauração de um processo administrativo disciplinar para apurar a possível ocorrência de excessos, desvio de finalidade, arbitrariedades “ou inobservância de requisitos indispensáveis à adequada e justa condução das investigações policiais” durante a operação.

“A recente decisão do TCU, que julgou improcedente a representação relativa aos fatos narrados e determina o arquivamento do respectivo processo, dá ciência à administração pública que as diligências adotadas no âmbito da Operação Ouvido Moucos, especialmente em relação ao Sr. Luiz Carlos Cancellier de Olivo, desconsideraram elementos essenciais decorrentes do princípio da presunção de inocência ou não culpabilidade”, diz o ofício assinado pelo ministro.

O presidente Lula (PT) também comentou o caso. Em evento no Palácio do Planalto com pesquisadores, no dia 12, ele disse que não poderia deixar de se lembrar de Cancellier.

“Sempre que a gente puder, temos que lembrar das pessoas que foram vítimas do arbítrio para que esse arbítrio, essa insanidade, nunca mais aconteça no nosso país”, disse Lula.

Nenhum deles, porém, citou que o ex-reitor não era investigado nem que, em outro processo do TCU, foram identificadas irregularidades no pagamento de bolsas fornecidas por esse mesmo programa.

Nesse caso, em que ex-reitor também não era citado, o tribunal constatou pagamentos para professores e tutores a distância para pessoas que não possuíam registros nos sistemas internos da UFSC, no montante total de R$ 2,3 milhões.

Além do pagamento de outras 127 bolsas por R$ 140 mil a pessoas que receberam concomitantemente auxílios por meio de contratos firmados entre a universidade e a sua fundação de apoio —o que é irregular, segundo o tribunal.

O TCU encerrou esse processo no dia 31 de maio, por considerar que a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) adotou providências em relação aos problemas detectados e adotou medidas corretivas sobre os pagamentos irregulares de bolsas.

A Associação da Auditoria de Controle Externo do TCU, que representa servidores do órgão, também publicou comunicado em seu site afirmando que não procedia a ideia veiculada por autoridades “no sentido de que o TCU teria descartado qualquer irregularidade cometida no episódio pelo ex-reitor” da UFSC e comprovado “sua inocência”.

O órgão também afirmou que a recente decisão do processo arquivado não tem relação nem afasta as irregularidades constatadas no pagamento de bolsas.

“A auditoria realizada pelo TCU no programa UAB na UFSC, como dito, não se restringiu ao contrato de locação de veículo com motorista, única irregularidade afastada e de baixa materialidade. Conforme demonstrado, o TCU atestou a ocorrência de irregularidades de densa relevância e materialidade no pagamento de bolsas, com expedição de determinações à Capes, cujas medidas corretivas foram adotadas e verificadas pelo TCU”, disse.

O Ministério da Justiça e Segurança Pública respondeu que a determinação à Polícia Federal para apuração em âmbito administrativo, inclusive disciplinar, é referente apenas ao processo arquivado.

UNIVERSIDADE E CAPES DIZEM QUE PROBLEMAS FORAM SANADOS

Em nota, a assessoria de imprensa da Capes informou à Folha que desenvolveu um plano de ações para cumprir as determinações, que resultou na elaboração de relatórios trimestrais de acompanhamento e monitoramento enviados ao TCU.

Também disse que foram feitos trabalhos de campo e diligências documentais. Afirmou também que, a partir disso, publicou uma portaria que regulamenta os processos seletivos nas instituições de ensino superior relacionados ao recebimento de bolsas da UAB.

“As irregularidades constatadas estão relacionadas a procedimentos administrativos internos, como definição de critérios claros no processo seletivo das bolsas, o que passou a vigorar com a publicação da portaria mencionada acima”, disse.

A assessoria de imprensa da UFSC disse que, em 2022, aspectos importantes dividiram as atenções da nova fase da gestão da UFSC.

A primeira, segundo a universidade, foi o saneamento e adequação das rotinas dos cursos na modalidade à distância. A segunda foi, diante dos compromissos assumidos, a retomada do financiamento para esse modelo de oferta de cursos de graduação.

“A UFSC, em relação às suas obrigações de dar respostas sobre Operação Ouvidos Moucos ao TCU, não tem nenhuma pendência”, disse.

A instituição acrescentou que não há pendências relacionadas ao ex-reitor Cancellier.

“Passados quase seis anos da prisão e morte do reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, do sofrimento da família, dos amigos e do terror imposto à comunidade acadêmica da UFSC, com consequências terríveis para a sua imagem, a Universidade tem a certeza que tudo isto poderia ter sido evitado, não fosse o equívoco de apetites midiáticos e policialescos de personagens desta história”, afirmou.

CONSTANÇA REZENDE / Folhapress

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