PRESIDENTE PRUDENTE, SP (FOLHAPRESS) – O engenheiro aeronáutico Murillo Pelosi, 42, dos 12 aos 38 anos pôde carregar na sua carteira a cédula de R$ 100 como a de maior valor em circulação no país.
Em setembro de 2020, 26 anos depois, a cédula de R$ 200, com a imagem do lobo-guará, substituiria a da garoupa, que reinou na fauna monetária por quase três décadas como a de mais valia.
Já o supervisor de vendas Roberto Fioravante Zaupa, 54, teve uma experiência completamente oposta até julho de 1994, mês da implementação do real. Viu circular cruzeiro, cruzado, cruzado novo, cruzeiro de novo e, por fim, cruzeiro real. Notas de 1, 10, 10 mil e de até 100 mil cruzados, isso quando a cédula não estava com um carimbo do Banco Central indicando um outro valor.
“Na hiperinflação o recebedor nem fazia tanta questão de receber cédulas de pequeno valor. Para ele compensava o consumidor ou o devedor acumular um montante maior para ser pago em cheque. O cartão de crédito até o início do real era uma modalidade elitista. O cuidado que a gente tinha de tomar era evitar o pagamento da conta na virada dos preços. Aquilo que se comprava por 100 poderia estar a 200 em menos de um mês”, relembra Zaupa.
Para a implantação do real como novo padrão monetário brasileiro, em 1994 o BC (Banco Central), em conjunto com a Casa da Moeda, desenvolveu projetos gráficos para as cédulas do real nos valores de R$ 1, R$ 5, R$ 10, R$ 50 e R$ 100, e para as moedas metálicas nos valores de R$ 0,01, R$ 0,05, R$ 0,10 e R$ 0,50, além de R$ 1.
Mas antes da distribuição da nova moeda física, era necessário um profundo diagnóstico do complexo sistema bancário da época.
José Antonio Marciano era chefe adjunto no Deban (Departamento de Operações Bancárias e de Sistema de Pagamentos) do BC em 1994. As principais atividades do departamento na época eram referentes aos recolhimentos compulsórios, à assistência financeira e à regulamentação da compensação de cheques.
“Participamos dos estudos e trabalhos durante todo o processo de identificação e de análise dos impactos do Plano Real e das medidas necessárias para que o SFN [Sistema Financeiro Nacional] se mantivesse operando regularmente e com segurança durante a transição. Estabelecemos as regras para o compulsório, principalmente sobre a forma como os bancos deveriam prestar as informações e como se processaria a conversão das posições nas reservas bancárias.”
Nem a Copa do Mundo daquele ano, quando a seleção de Carlos Alberto Parreira e Romário conquistaria o tetracampeonato brasileiro, afetou a rotina de atividades emergenciais no BC. O torneio aconteceu entre 17 de junho e 17 de julho, na transição do cruzeiro real para o real.
“Passei boa parte da Copa no banco. Nos jogos do Brasil, algumas equipes eram liberadas, mas havia plantão. Participei de uma reunião com colegas do Ministério da Fazenda e com Gustavo Franco pouco antes de um jogo da seleção, e o diretor fez demandas que deveriam ser atendidas antes do intervalo da partida”, relembra Marciano.
“Era sobre as regras para reajuste dos valores de aluguéis, medida importante para a desindexação da economia. A inflação era tão alta que as pessoas tinham perdido a noção de referência de valor de uma coisa em relação a outra. A função de unidade de conta da moeda estava muito deteriorada”, afirma.
Tulio Maciel integrava a equipe que se debruçava todos os dias sobre uma série de indicadores. O trabalho era feito pela Coace (Consultoria de Análise de Conjuntura Econômica), unidade que ainda existe. Ele lembra que o BC já possuía computadores, mas o acesso às máquinas era limitado.
“Tínhamos dois ou três computadores por divisão. Quem precisasse fazer algum trabalho pegava um disquete, ia até a máquina, executava a tarefa e saía, para liberar o computador. Tinha que ser um trabalho dinâmico. A inflação estava em aceleração.”
Após os cálculos com os índices de preços mais recentes, a Coace se reunia com o diretor de setor externo, Gustavo Franco, e com a mesa de câmbio do Depin (Departamento das Reservas Internacional) para bater o martelo sobre o valor da URV que seria divulgado no dia seguinte.
Em parceria com a área de supervisão, o departamento operacional também teve de mapear as instituições financeiras com maior probabilidade de apresentar problemas de liquidez após a implementação da nova moeda.
A NOVIDADE
Meses antes da implantação do real, a equipe econômica do presidente Itamar Franco definiu que as cédulas do novo padrão deveriam apresentar características gerais diferentes das que marcavam as notas de cruzeiros reais.
O BC decidiu que deveria ser viável a fabricação concomitante de cédulas de variados valores em ampla escala com padronização de um anverso, com a efígie da República, e cores diferenciadas por valor. No reverso, a escolha por animais da fauna brasileira.
A cédula de R$ 1 traria uma gravura da cena de um beija-flor alimentando filhotes em seu ninho. A de R$ 5 seria representada por uma garça, enquanto a de R$ 10 seria estampada com uma arara, típica do Brasil e de outros países latino-americanos. A onça-pintada, ameaçada de extinção, foi o animal escolhido para ilustrar a cédula de R$ 50. Por fim, a cédula de R$ 100 teria a gravura de uma garoupa, um dos peixes marinhos mais conhecidos e valiosos dentre os encontrados nas costas brasileiras.
A efígie comum no anverso, no entanto, já era uma velha conhecida da população: seria a mesma imagem que estampa o anverso da cédula de 200 cruzados novos e de 200 cruzeiros.
DISTRIBUIÇÃO
A implantação do novo padrão monetário exigiu a troca integral do meio circulante em 1994. Desde a decisão de criar as novas cédulas, em 27 de fevereiro de 1994, e a entrada em circulação da moeda em 1º de julho do mesmo ano em todo o território nacional, foi um trabalho dado de curto prazo.
Além da Casa da Moeda, que produziu todas as cédulas de R$ 1 e de R$ 100, foram contratados três fornecedores estrangeiros para a produção de 260 milhões de cédulas de R$ 5, R$ 10 e R$ 50.
A empresa alemã Giesecke & Devrient GmbH fabricou 100 milhões de cédulas de R$ 5. A inglesa Thomas De La Rue and Company Limited produziu 120 milhões de cédulas de R$ 1. E a francesa François-Charles Oberthur Fiduciaire, 40 milhões de cédulas de R$ 50.
Para viabilizar o abastecimento de todo o território nacional no momento da “virada”, diversas viagens foram necessárias para a distribuição do padrão real até 30 de junho daquele ano. Foram feitas 106 viagens aéreas levando, no total, 906 milhões de cédulas (correspondente a R$ 18,6 bilhões) e 252,9 milhões de moedas (correspondente a R$ 89,6 milhões).
“Lembro do planejamento para a entrega nas áreas mais remotas e de difícil acesso, como a entrega para as populações ribeirinhas”, cita Maria Cristina de Lauro, que comandava a equipe de tira-dúvidas via telefone para todo o Brasil.
Acabaram sendo feitas 37 viagens terrestres levando, no total, 34,8 milhões de cédulas (igual a R$ 1,36 bilhão) e 432,2 milhões de moedas (igual a R$ 148 milhões). Em 2001, o real passou a ter também cédulas de R$ 2 e de R$ 20, que entraram em circulação para facilitar o troco e simplificar transações. Por fim, em setembro de 2020, entrou em circulação a de R$ 200.
O auditor João Sidney de Figueiredo Filho, técnico do BC na época, participou como membro de uma equipe de mais de 400 servidores para a equação do meio circulante da nova moeda, que só foi desmobilizada em 1995.
O maior desafio da equipe, além do sigilo e da segurança, foi o acompanhamento do numerário para diversas regiões do país, contando com o apoio logístico e de segurança das Forças Armadas, da Polícia Militar do estado e da Polícia Federal.
“Chegamos a passar semanas sem voltar para casa. Após a conclusão de uma missão, começávamos outra, dada a urgência do 1º de julho de 1994.”
“De maio a junho de 1994, regulamos a oferta de cruzeiro real e também a do real, que deveria ser armazenado sob custódia até o dia 1º de julho nas dez praças onde o Banco Central possuía representação no país”, continua Figueiredo Filho.
“Depois do lançamento, começamos também o recolhimento da antiga moeda [cruzeiro real] para destruir e descaracterizar o antigo numerário. No caso das moedas de centavo, o real começou sem a de 25. A procura foi tanta por conta da valorização que a Casa da Moeda teve de fabricar às pressas a de 25 centavos para facilitar o troco.”
EMERSON VOLTARE / Folhapress