BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A AGU (Advocacia-Geral da União) pediu ao STF (Supremo Tribunal Federal) a derrubada do limite para precatórios instituído no governo Jair Bolsonaro (PL) e propôs o pagamento de parte das sentenças judiciais como despesa financeira, sem esbarrar em regras fiscais.
O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pede ainda autorização para quitar o estoque represado até agora por meio de crédito extraordinário, que também fica fora do alcance dos limites orçamentários. O passivo é estimado em cerca de R$ 95 bilhões, e sua regularização deve elevar a dívida pública.
O posicionamento do órgão jurídico busca abrir caminho para a estratégia do ministro Fernando Haddad (Fazenda) de “despedalar” os precatórios antes de 2027, quando o fim teto para pagamento dessas dívidas poderia detonar uma bomba fiscal superior a R$ 250 bilhões, em números atualizados pelo governo.
O plano do governo de classificar parte do gasto com precatórios como despesa financeira foi antecipado pela Folha de S.Paulo em agosto.
A mudança no tratamento contábil requerida pela AGU valeria não só para o estoque, mas também para os precatórios emitidos no futuro. O objetivo é reduzir a pressão sobre o novo arcabouço fiscal, que limita apenas o crescimento de despesas primárias.
A intenção de regularizar os precatórios tem sido bem recebida no mercado financeiro, mas a forma escolhida (reclassificação da despesa) é vista por críticos como manobra para evitar a piora nas estatísticas fiscais, numa espécie de reedição da contabilidade criativa adotada em gestões anteriores do PT -rótulo que membros do atual governo rejeitam.
A ideia original era apresentar uma PEC (proposta de emenda à Constituição) para tratar da questão, mas o governo optou inicialmente por uma investida judicial, considerada menos complexa.
Uma PEC precisa do apoio de 308 deputados e 49 senadores para ser aprovada. No Supremo, o governo trabalhará para convencer 11 ministros.
A petição foi apresentada nesta segunda-feira (25) no âmbito de uma ação direta de inconstitucionalidade que questiona a validade das emendas constitucionais aprovadas no fim de 2021. O relator da ação é o ministro Luiz Fux. Os pedidos ainda precisarão ser analisados pela corte.
O teor da manifestação representa uma mudança no posicionamento da AGU, que sob Bolsonaro defendeu a constitucionalidade do limite de precatórios. A medida, aprovada com o objetivo de abrir espaço no Orçamento de 2022 para turbinar gastos em ano eleitoral, foi apelidada por críticos de “PEC do Calote”.
Segundo a AGU, a virada na postura se dá após uma nota técnica conjunta do Tesouro Nacional, da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional) da SOF (Secretaria de Orçamento Federal) apresentar “análise técnica minuciosa sobre o tema”.
O argumento central dos técnicos é o de que o novo regime de pagamento de precatórios impõe dificuldades à sustentabilidade fiscal de longo prazo, produz impactos negativos nas estatísticas fiscais, além de trazer efeitos econômicos nocivos indiretos, com reflexos sobre a reputação do país.
“A permanência do atual sistema de pagamento de precatórios tem o potencial de gerar um estoque impagável, o que resultaria na necessidade de nova moratória, intensificando e projetando em um maior período de tempo as violações a direitos fundamentais”, diz a AGU no documento.
O governo pede que o STF declare a inconstitucionalidade do teto de precatórios e dos artigos que autorizam o chamado encontro de contas -instrumento de compensação que permite o uso de precatórios pendentes para quitar compromissos com a União, como dívidas tributárias e outorgas de leilões.
A AGU também propõe medidas para “viabilizar a solução definitiva do problema” do estoque de precatórios, que pode alcançar R$ 95 bilhões, considerando os montantes represados até o fim de 2023 e o que deixaria de ser pago em 2024 pela sistemática atual.
Uma das propostas é a separação do valor das dívidas em principal (obrigação que originou a disputa judicial) e encargos com juros e correção monetária. O primeiro grupo seria pago como despesa primária, mantendo a classificação do passivo alvo da disputa (salários, benefícios previdenciários ou contratos com o governo). Já os encargos seriam quitados como gasto financeiro.
Hoje, os encargos também são considerados despesas primárias, o que os técnicos defendem ser inapropriado. Para o governo, eles se assemelham aos juros da dívida pública.
“[O]s encargos financeiros associados às sentenças judiciais refletem o efeito monetário da passagem do tempo sobre um direito existente contra o Estado, somado a eventuais penalidades que visam a ressarcir o credor pelo atraso no reconhecimento desse direito e no pagamento da respectiva dívida. Esse componente das sentenças judiciais tem, portanto, clara natureza financeira”, dizem os técnicos, em trecho reproduzido pela AGU.
Esse é um ponto-chave do plano, pois os gastos financeiros ficam fora do alcance do limite de gastos do novo arcabouço fiscal e da meta de resultado primário, embora sua existência continue impulsionando o endividamento do país.
Na nota conjunta anexada ao processo, Tesouro, PGFN e SOF afirmam que só retirar o estoque de precatórios do alcance das regras fiscais em vigor não seria suficiente para resolver o impasse.
Caso as dívidas judiciais continuem crescendo em ritmo significativo nos próximos anos, elas podem ocupar espaço de outras políticas dentro do novo arcabouço, que tem sua expansão limitada a um percentual entre 0,6% e 2,5% acima da inflação ao ano. A mudança de tratamento, por sua vez, ajuda a aliviar essa pressão.
“Diante do novo Regime Fiscal Sustentável -que tem um olhar de longo prazo, com penalidades para o crescimento das demais despesas orçamentárias nos anos seguintes caso a meta de resultado primário não seja alcançada-, faz-se necessária uma solução definitiva para que apenas gastos efetivamente de natureza primária impactem esse conceito de apuração do esforço da gestão fiscal responsável”, diz o texto da nota técnica reproduzido pela AGU.
Sob essa lógica, o governo pede autorização para redistribuir o estoque de precatórios entre despesas primárias e financeiras, “por meio de parametrização aproximada”, num prazo de até 60 dias a partir da decisão. A peça, porém, não detalha quanto dos R$ 95 bilhões ficaria em cada categoria.
O documento pede que o STF determine aos órgãos competentes a segregação desses valores nas expedições futuras de precatórios, para viabilizar a reclassificação também nos próximos anos.
A AGU solicita ainda que a corte “reconheça a urgência e a imprevisibilidade do pagamento imediato dos precatórios expedidos e não pagos já informados à União”, permitindo ao Executivo abrir crédito extraordinário para regularizar as dívidas já acumuladas em até 60 dias. A única exceção seriam os débitos equivalentes ao montante reservado na proposta orçamentária de 2024, que seriam quitados conforme já programado.
Segundo os técnicos, o “pagamento imediato do estoque de precatórios expedidos e não pagos por meio da abertura de crédito extraordinário cria condições para regularização dos pagamentos sem comprometer o planejamento orçamentário em curso”.
A petição pede também que o STF “afaste do cumprimento da eventual decisão dessa Suprema Corte quaisquer limites legais e constitucionais ou condicionantes fiscais, financeiras ou orçamentárias aplicáveis”.
Em outro trecho, o governo tenta obter do STF uma decisão que amarre também o Banco Central, órgão responsável pelas estatísticas oficiais das finanças públicas brasileiras.
É o BC quem calcula o resultado primário do governo e aponta se a meta fiscal do ano foi cumprida ou não. Para isso, a instituição se baseia em um manual próprio de normas, inspirado em critérios utilizados internacionalmente, e pode divergir de critérios adotados pelo Tesouro Nacional.
Como o BC classifica precatórios como despesas primárias, a regularização do passivo em 2023 poderia piorar de forma excessiva o resultado deste ano, que já é de um déficit de R$ 141,4 bilhões. A meta permite um rombo de até R$ 216,4 bilhões. A interpretação do BC ainda poderia exigir maior esforço do governo para cumprir os alvos estabelecidos para os anos seguintes.
Por isso, o governo pede que o STF autorize os órgãos responsáveis tanto pela execução orçamentária e financeira quanto pela apuração das estatísticas fiscais a conferir aos encargos dos precatórios o mesmo tratamento contábil dado aos juros da dívida pública.
IDIANA TOMAZELLI / Folhapress