NOVA DÉLI, ÍNDIA (FOLHAPRESS) – A liberdade de expressão na Índia sofreu mais um revés, dessa vez com a aprovação da Lei de Proteção de Dados Pessoais Digitais, em agosto.
A legislação permite ao governo bloquear o acesso a determinadas plataformas online ”quando for do interesse público” e enfraquece a Lei de Direito à Informação ao permitir que autoridades neguem fornecimento de dados considerados pessoais, como, por exemplo, salários de funcionários públicos.
Trata-se do mais recente capítulo da investida do primeiro-ministro Narendra Modi contra as liberdades digitais na Índia.
Especialistas e ativistas alertam para o que veem como crescente autoritarismo digital no país. Desde 2021, o governo do BJP, o partido de Modi, adotou uma série de leis e regulamentos para aumentar o controle sobre as plataformas digitais e a mídia online.
A Lei de Proteção de Dados obriga qualquer fiduciário empresas e órgãos que coletam, armazenam ou processam os dados a “fornecer informações” requeridas pelo governo. Como sites noticiosos podem ser considerados fiduciários, a legislação abre brecha para a violação de princípios como o sigilo de fontes e até a privacidade de assinantes e financiadores da publicação.
A mesma lei estabelece que, caso um veículo viole duas vezes as regras, ele pode ser bloqueado ao acesso público. Versões anteriores da lei previam exceções para veículos jornalísticos, tal como a Lei Geral de Proteção de Dados da União Europeia mas o texto final aprovado, não.
Trata-se, portanto, de mais uma via de censura de conteúdo online na Índia, que já se submetia à Lei de Tecnologia da Informação de 2000. Essa legislação já permitia ao governo bloquear conteúdo que fosse considerado uma ameaça “à soberania e à integridade da Índia, à segurança do Estado e à ordem pública”.
O objetivo alegado da lei de proteção de dados é regular as big techs e punir vazamentos de dados sensíveis. No entanto, a legislação prevê isenção de responsabilidade para o governo e autoriza que o Executivo use dados dos cidadãos para finalidades para as quais não obteve consentimento explícito em casos de “segurança nacional” ou mesmo para para oferecer serviços públicos como benefícios sociais e subsídios.
Isso em um país onde o governo está fazendo uma coleta maciça de dados de seus cidadãos, com armazenamento de dados biométricos e informações sobre saúde, veículos e finanças de todos os cidadãos indianos.
“Como o governo pretende usar esses dados?”, questiona Salman Waris, advogado especializado em tecnologia e sócio-diretor do TechLegis, escritório focado no setor. “A Índia está no mesmo caminho que a China, que está perfilando todos os seus cidadãos e usando essas informações do jeito que bem entende.”
Em 2021, a Índia adotou as draconianas Regras de Tecnologia da Informação (TI). As plataformas passaram a ter novas obrigações para ter direito ao chamado “porto seguro” imunidade de responsabilização por conteúdo ilegal postado por terceiros, a não ser após descumprimento de ordem de remoção do governo, semelhante ao Marco Civil da Internet no Brasil.
As regras exigem que as plataformas removam conteúdo dentro de 36 horas após determinação do Estado e forneçam informações requeridas por órgãos de segurança. Também exigem que as big techs tenham representantes locais para responder a eventuais solicitações do governo. Essa última exigência chega a ser considerada uma forma de “fazer reféns”, já que os funcionários indianos podem acabar na prisão se não cumprirem as ordens.
Também para garantir o “porto seguro”, as plataformas são obrigadas a informar os usuários sobre conteúdos que cuja publicação é proibida, como postagens que ameaçam a soberania e integridade da Índia, que atrapalham o relacionamento com países amigos, que incitam a violência, que perturbam a ordem pública e que atentam contra a decência e moralidade.
Outra medida prevista nas regras, que está sendo questionada na Justiça, é a rastreabilidade de mensagens em aplicativos como WhatsApp, Telegram e Signal. Ela exige a identificação da primeira pessoa que enviou determinada mensagem, caso demandada pelo governo. Segundo as empresas, ela acaba com a criptografia e o sigilo das informações.
As regras vieram na esteira de crescentes embates entre o governo Modi e as big techs. Em fevereiro de 2021, o país foi tomado por protestos contra as novas leis agrícolas, e o governo determinou a derrubada de perfis e postagens críticas ao premiê. A princípio, as plataformas resistiram, o que irritou o governo Modi. Quando o Twitter rotulou uma postagem de um integrante do partido governista como “mídia manipulada”, a empresa foi alvo de uma operação policial e seus funcionários receberam ameaças de prisão. A plataforma acabou cedendo e removeu 500 perfis.
Em 2022, uma emenda às Regras de TI apertou ainda mais o cerco. Além de informar os usuários sobre conteúdo proibido, as plataformas deveriam “fazer esforços razoáveis” para evitar essas publicações, o que implica em ativamente filtrar e derrubar conteúdo.
Em abril de 2023, uma nova emenda foi além e determinou que conteúdo relativo ao governo classificado como “falso” por um órgão estatal de checagem de fatos precisa ser removido das plataformas de internet na prática, dando poder de censura ao governo Modi.
“É uma ameaça à liberdade de imprensa, pois uma reportagem investigativa apontando atos de corrupção do governo pode ser removida com a desculpa de ser [considerada] ‘fake news'”, afirma Prateek Waghre, diretor de políticas da Internet Freedom Foundation.
Em janeiro deste ano, o governo Modi invocou as leis e determinou ao YouTube que retirasse do ar em 36 horas trechos do documentário da BBC “Índia: A Questão Modi”. A obra trata da participação do premiê em conflitos violentos entre muçulmanos e hindus no estado de Gujarat, em 2002, quando ele era ministro-chefe (equivalente a governador). Modi também ordenou ao X (ex-Twitter) que removesse postagens que contivessem links para o documentário e indicou 50 dessas publicações.
Segundo um integrante do governo informou ao jornal The Hindu, o documentário deveria ser derrubado porque minava a “soberania e integridade da Índia” e tinha o potencial de impactar “a ordem pública”.
Agora, o governo indiano se prepara para levar a voto a nova Lei Índia Digital, que determina que as big techs só terão imunidade caso ela seja concedida diretamente pelo governo, como se fosse uma licença.
“O governo está usando o tamanho do mercado da Índia [837 milhões de assinantes de internet, atrás apenas da China] como alavancagem para negociação. Se não seguirem as ordens, [as plataformas] estão fora do mercado”, diz Waris, do TechLegis.
Enquanto isso, a Índia se mantém como o país que mais bloqueia a internet no mundo segundo a Access Now, foram 84 interrupções no ano passado. Em segundo lugar veio a Ucrânia, um país em guerra, com 22 bloqueios.
Jyoti Panday, pesquisadora do Projeto de Governança da Internet no Instituto de Tecnologia da Geórgia (EUA), diz entender a necessidade de regulação das big techs. “Sem a ameaça de legislação, elas não fazem nada, já vimos isso.” Mas, para ela, a Índia está criando o pior tipo de regulação. “É preciso ter legislação focada em transparência. Do jeito que a lei evoluiu na Índia, concentrou todo o poder nas mãos do governo.”
Waghre, da Internet Freedom Foundation, faz outra ponderação. “Não queremos que as plataformas tenham o poder de decidir o que é liberdade de expressão. Mas queremos que o governo tenha esse poder?”
Procurada, a embaixada da Índia não se pronunciou até a publicação desta reportagem. Nas redes sociais, o ministro de Estado para Tecnologia da Informação, Rajeev Chandrasekhar, defendeu a Lei de Privacidade de Dados. “A nova lei vai proteger os direitos de todos os cidadãos, permitir que a economia da inovação se expanda e autorizar que o governo tenha acesso legítimo [a dados] em casos de [ameaça] à segurança nacional e emergências”.
Ele também rebateu as críticas contra as emendas de 2023. “Se [as plataformas] terão a imunidade, elas precisam obedecer. Não pode existir uma desculpa para escapar da responsabilidade. Não é uma tentativa de censurar conteúdo.”
PATRÍCIA CAMPOS MELLO / Folhapress