Grupo católico com 98 escolas no Brasil cria jogos para ensinar educação sexual

ALMIRANTE TAMANDARÉ, PR (FOLHAPRESS) – Na região metropolitana de Curitiba, um grupo de estudantes do 8° ano do ensino fundamental se reúne para uma aula de ciências sobre o corpo humano. O armário do fundo da sala está cheio de modelos anatômicos de órgãos, esqueletos e outros materiais didáticos, mas eles não serão utilizados.

O que eles terão que fazer é percorrer quatro mesas, cada uma com uma dinâmica proposta pela professora, e pensar coletivamente em soluções para questões relacionadas a complexos com o corpo na puberdade, violação de direitos de crianças e adolescentes, assédio, limites e consentimento.

A temática desperta algumas risadas e brincadeiras típicas de adolescentes de 13 anos, mas, na maior parte do tempo, a conversa ali é séria.

O que fazer quando um colega começa a te abraçar de uma forma que te cause desconforto, dizendo que é só uma brincadeira? Como ajudar uma amiga que mudou de comportamento por sofrer comentários depreciativos sobre seu corpo? A quem recorrer quando se sabe que um amigo está sofrendo abuso?

No final da aula, uma aluna, que ficou mais retraída, procura discretamente a professora, Marina Vatti, para uma conversa particular.

“Esse assunto toca em algo profundo, que é a questão do abuso”, afirma. “Sempre acontece de alguém ficar fragilizado e me procurar para dar um relato: ‘Poxa, isso acontecia comigo. Eu não me sentia confortável, mas nunca contei para ninguém’.”

Vatti é professora da Marista Escola Social Ecológica, localizada em Almirante Tamandaré, cidade paranaense que está entre as 50 mais violentas de todo o Brasil, segundo o Anuário de Segurança Pública de 2023.

Mantenedora de 600 instituições educacionais em 80 países, a ordem religiosa francesa dos Irmãos Maristas tem 98 escolas no Brasil, 63 delas são particulares e 35, sociais.

Fundada em 1994, a de Almirante Tamandaré fica em um amplo espaço verde, com horta, ovelhas pastando, uma capela e uma sede decorada por símbolos religiosos como cruzes, imagens de Jesus e de Nossa Senhora e fotografias do papa Francisco.

Cerca de 300 alunos de baixa renda com idades de 10 a 17 anos estudam ali em período integral, com aulas de robótica, circo, teatro, inglês, música e dança, além da grade regular.

No Brasil, os maristas são referência em um assunto que é tabu para muitas instituições religiosas: a prevenção à violência sexual contra crianças e adolescentes por meio da educação sexual, alvo de embates recentes entre grupos conservadores e progressistas no país.

Além de levar o assunto para as salas de aula de sua rede educacional, o instituto criou o programa Defenda-se, com vídeos educativos e materiais de apoio para ajudar crianças de 4 a 12 anos a reconhecerem a violência sexual e a buscarem ajuda.

A campanha, vencedora dos prêmios Neide Castanha, do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, e da Aberje (Associação Brasileira de Comunicação Empresarial), está disponível online para qualquer pessoa que queira utilizá-la.

Segundo Landarin, garantir direitos de crianças e adolescentes e enfrentar o abuso sexual são prioridades do próprio papa Francisco, que efetuou mudanças no Direito Canônico em 2021 para endurecer as punições para casos de abusos sexuais na Igreja, por exemplo.

O conteúdo também é parte da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), e Landarin defende que, por vários motivos, é papel das escolas abordar o assunto, mesmo que alguns pais se sintam desconfortáveis -muitas vezes por desconhecerem o que é abordado.

“Não estamos ensinando ninguém a fazer sexo. Educação para a sexualidade é falar sobre noções de intimidade, privacidade, sobre os papéis esperados na sociedade para meninos e meninas”, diz.

Para Landarin, o enfrentamento da violência sexual na infância passa por uma mudança cultural mais ampla, pela qual a sociedade passe a enxergar as crianças como sujeitos de direitos, e não como um objeto do adulto.

“A gente diz para a criança que ela tem que obedecer sempre os adultos, não as ensinamos a colocar limite. Se não é aceitável eu bater no meu colega de trabalho nem em um idoso, por que está tudo bem bater numa criança?”

Outro argumento dela a favor de que as escolas assumam a educação para a sexualidade é que professores têm um treinamento para ministrar esse tipo de conteúdo, o que não acontece com a maioria dos adultos que convivem com as crianças.

“Nossa geração não teve essa preparação. Boa parte das famílias, se você perguntar como é que identifica uma situação de abuso sexual, não vai saber te responder”, diz.

JOGO DE CARTAS

Na escola social de Tamandaré, a capacitação para lidar com a temática da violência contra crianças é obrigatória para todo o quadro funcional -professores, faxineiros, cozinheiros, secretários administrativos, todos os novos contratados precisam fazer o curso.

A ideia é que qualquer adulto que venha ser procurado por um estudante vítima de abuso saiba como agir.

“Essas crianças passam o dia todo conosco, nos têm como referência. Se alguma delas quiser pedir ajuda, vai procurar um adulto no qual confie, que não necessariamente é o professor que fala de educação sexual em sala, pode ser qualquer outro profissional que tenha criado um vínculo com ele”, explica Karin Lacerda, diretora da escola.

Ela ressalta, porém, que a iniciativa tem que partir do estudante, ou seja, a revelação deve ser espontânea. “Nós jamais abordaremos uma criança para fazer perguntas, mas ela deve se sentir à vontade nesse ambiente seguro para revelar o que ocorre com ela e então nós podemos protegê-la”, diz Lacerda.

Reconhecida pela lei 13.431/2017 (“lei da escuta protegida”), a revelação espontânea é um relato feito por uma vítima ou testemunha de violência a qualquer pessoa de sua confiança, independentemente de sua formação ou especialidade.

Para ensinar pessoas leigas no assunto a agir corretamente nessas situações, o programa Defenda-se criou um jogo de cartas coloridas e ilustradas chamado justamente Revelação Espontânea.

Disponível para download gratuito, o jogo traz perguntas e respostas sobre como identificar sinais de violência, qual postura adotar ao acolher o estudante, quais órgãos devem ser informados sobre a denúncia e o que fazer após realizar esse encaminhamento.

A dinâmica se aprofunda em dilemas que podem surgir na prática e que são discutidos em grupos durante os treinamentos da escola paranaense.

Como acolher revelações feitas por mídias sociais? E se o relato aparecer em sala de aula? Se a vítima não tiver dimensão da gravidade do seu relato, devo informá-la? E se a criança ou adolescente não confiar mais em mim por contar o seu segredo?

Por ser uma violência praticada majoritariamente por alguém próximo à criança, pode ser um choque para a família receber essa informação, explica Bianca Larangeira, psicóloga da escola.

Segundo a profissional, além de encaminhar o caso à rede de proteção do município, a instituição dá suporte pedagógico e psicossocial ao estudante e a seus responsáveis nesse percurso doloroso.

“Precisamos apoiá-lo para que ele possa ter um desenvolvimento integral. Não adianta as notas dele estarem excelentes se ele está em sofrimento emocional”, afirma.

Nos treinamentos, Larangeira informa o que diz a legislação e qual é o fluxo a ser seguido no processo de revelação, mas também dá orientações comportamentais -não instigar o aluno para que conte detalhes em excesso, evitando revitimizá-lo, por exemplo.

Para Marina Vatti, sentir-se apoiada pela instituição para ministrar esse tipo de conteúdo é crucial. “Quando eu comecei, eu era muito insegura, não sabia como falar, porque a universidade não nos prepara para isso. Hoje eu me sinto muito tranquila porque a gente tem esse preparo, aprende como acolher.”

Antes de começar a tratar do tema com alguma turma, a professora de biologia costuma pedir que os alunos escrevam suas dúvidas em um papel, sem a necessidade de se identificar, e usa essas sugestões para planejar o conteúdo dos encontros seguintes.

Perguntas sobre menstruação, inseguranças com o corpo e dúvidas sobre a própria orientação sexual são inquietações comuns.

Vatti também faz alertas sobre namoros virtuais e segurança na internet, na tentativa de prevenir violências sexuais online.

“Eles têm aquela inocência de quem nunca viveu um relacionamento e acreditam em tudo o que está escrito ali, nas fotos que estão recebendo. Eles acham que para ser abuso precisa haver um toque físico, ficam chocados quando a gente comenta que não devem enviar foto para qualquer pessoas, mostrar as partes íntimas”.

Além das orientações em sala de aula, a escola promove eventos de conscientização para os alunos e seus familiares. Muitas das revelações acontecem após essas palestras. “É algo que eu vejo na prática a diferença que faz”, diz Bianca Larangeira.

De janeiro a agosto de 2023, a escola notificou à rede de proteção do município 13 casos de revelações espontâneas de violência sexual, dos quais 8 aconteceram na semana do 18 de Maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, quando foram oferecidas palestras sobre o tema para toda a comunidade escolar.

“Por um lado, a gente fica triste com tantas revelações”, diz a diretora Karin Lacerda. “Mas, por outro, a gente diz: ‘poxa, é um ambiente em que as crianças estão se sentindo seguras para nos revelar o que está acontecendo com elas’.”

FLÁVIA MANTOVANI E MATHILDE MISSIONEIRO / Folhapress

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