SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um grupo chinês escolhe Mataraca, cidade de menos de 10 mil habitantes no norte da Paraíba, para um megainvestimento: a construção de um porto de águas profundas e de uma cidade de fazer inveja em Dubai.
Em cerimônia no dia 11 de dezembro com prefeitos da região, secretários estaduais, representante do governo federal, padre e vereadores, os envolvidos assinaram um protocolo de intenções. No evento, hinos da China e do Brasil e uma oração para abençoar o novo empreendimento.
“Mataraca pode vir a ser no futuro a cidade mais moderna do Brasil e do continente americano, vivenciando um desenvolvimento jamais materializado em todo o país”, disse o mestre de cerimônias sobre a cidade anunciada para abrigar 3 milhões de pessoas -mais de três vezes a população de João Pessoa.
Os prazos: três anos para o porto e cinco anos para a cidade. O investimento: R$ 9 trilhões -quase o PIB do Brasil em 2022.
É o que promete a Brasil CRT Construção de Nova Cidade Ltda., empresa sem site, telefone ou experiência prévia comprovada. No cadastro do CNPJ, a companhia diz que tem um capital social de R$ 800 bilhões –quatro vezes o capital social informado no CNPJ da Petrobras, maior empresa do Brasil.
A companhia, com sede em Belo Horizonte, é comandada pelos chineses Jianing Chen e seu filho Ruotian Chen. Em conversa com a Folha, sustentam que os valores estão corretos e que têm capacidade para construir o empreendimento monumental no prazo tão curto.
Mas o restante dos envolvidos não tem tanta certeza disso.
O que deveria ser o lançamento da pedra fundamental do projeto que transformaria para sempre a região -e, com esses montantes, até o Brasil- mostrou-se muito mais complicado que isso.
Logo após a cerimônia, o Jornal da Paraíba revelou que o vídeo apresentado na cerimônia em Mataraca no dia 11, que deixaria qualquer metrópole dos “Jetsons” no chinelo, era na verdade o projeto de um escritório dinamarquês para um distrito futurista em Shenzhen, no sul da China -onde estão as maiores empresas de tecnologia do país.
À Folha de S.Paulo Jianing Chen afirmou que havia dois vídeos para serem exibidos na cerimônia. “Mas o primeiro foi deixado acidentalmente em um laptop em um hotel, então só pudemos mostrar o segundo vídeo na reunião. Gostamos de algumas das novas ideias de design e estilos deles, e planejamos incorporar esses novos elementos em nosso design real de construção”, disse.
Na cerimônia, o diretor de relações públicas da empresa, Gianninni Farias, afirmou: “Isso é um projeto real e iremos construir em Mataraca”.
Após a revelação do projeto copiado, o consulado da China no Recife, que atende a região, afirmou à imprensa local que desconhece a empresa e ter “motivo para acreditar que é uma fraude”.
O vice-cônsul da China no Recife, He Yongwei, não falou em fraude em conversa com a reportagem, mas reiterou que “não possui informações a respeito dessa empresa nem do projeto supracitado, e não tem nenhum contato com a empresa.”
No evento em Mataraca, Ruotian Chen afirma que o projeto “segue firmemente o plano de desenvolvimento da iniciativa Belt e Estrada da China”, referindo-se à Nova Rota da Seda, ou “Belt and Road Initiative” em inglês, em que Pequim financia projetos de infraestrutura em todo o mundo em um projeto de expansão de influência. O Brasil não aderiu oficialmente ao projeto.
O CEO da empresa disse à Folha que nunca afirmaram ser parte da iniciativa do governo, mas que apenas que o apoiavam.
Com tudo isso, a promotora de Justiça de Mamanguape, Ellen Veras, resolveu instaurar “procedimento extrajudicial” para investigar o caso, disse o Ministério Público da Paraíba à reportagem.
Após a revelação das suspeitas, o governador da Paraíba, João Azevêdo (PSB), desmarcou uma reunião que teria com o grupo no dia seguinte à cerimônia.
Nonato Bandeira, secretário de Comunicação do estado, afirmou à reportagem que “o governo não teve nenhum contato” com os empresários.
“Tentaram uma audiência por meio de um auxiliar do governo, mas, quando entramos em contato com a Embaixada da China para saber se representavam ou tinham aval do governo chinês, como alardeavam por aqui, recebemos a informação de que esse perímetro era de total desconhecimento do governo lá na China. Sem falar dos valores absurdos fora de qualquer realidade”, disse.
Mas ao menos dois representantes do governo paraibano estiveram na cerimônia de assinatura do contrato em Mataraca, no dia 11. Robson Barbosa, secretário-executivo de Energia da Secretaria de Infraestrutura, discursou no palco do evento e tirou foto com os empresários.
“Da parte do governo do Estado, nós viemos para apoiar, viemos para apoiar”, disse. “Em se concretizando, isso é um projeto que elevará a região e a Paraíba a outro patamar. Vamos unidos dar as mãos para concretizar esse projeto”, afirmou.
Mas como esse grupo de chineses foi parar na pequena Mataraca com a proposta de uma ‘cidade do futuro’?
Bianca Bezerra, secretária de Cultura da cidade, conta que a região “perdeu de forma bruta e extrema a arrecadação” desde que uma mineradora encerrou as operações no local há três anos. A partir daí, governantes da região tentaram retomar um projeto antigo de construção de um porto.
“Nos últimos dois anos, a prefeitura vem pedindo junto ao governo do estado a oportunidade de abrir as portas para investidores colocarem o porto aqui, para aumentar o emprego e a renda. E então surgiu esse projeto”, conta.
Quem apresentou os chineses aos políticos da região foi José Orlando, presidente da consultoria BNBR Brasil.
Em maio de 2021, conta Orlando à Folha, os chineses o procuraram em busca de terras na região para desenvolver um projeto de cidade. Primeiro, conheceu pessoalmente Gianninni Freitas, diretor de relações públicas, e o apresentou aos secretários estaduais Deusdete Queiroga Filho (Infraestrutura e dos Recursos Hídricos) e Gilmar Martins Santiago (Planejamento, Orçamento e Gestão).
Segundo ele, os chineses estavam interessados em 11 mil hectares na região. Eles não chegaram a fechar a compra de nenhuma terra, conta, mas negociaram em regime de permuta as áreas em troca de unidades habitacionais na suposta nova cidade.
Orlando afirma que foi surpreendido pelo valor anunciado de R$ 9 trilhões, porque durante as negociações a empresa falava em R$ 150 bilhões. Além disso, a nova cidade seria para 250 mil habitantes, não para 3 milhões.
Apesar da mudança expressiva, ele não endossa as suspeitas de fraude.
“Uma empresa não vai passar 36 meses buscando oportunidades de negócios, investindo milhares de reais com foco num determinado negócio para jogar tudo pela janela”, diz.
“A CRT Brasil não é administrada por aventureiros, e sim por empresários com expertise e que sabem aonde querem chegar”, afirmou.
A ideia do porto de águas profundas em Mataraca não é nova. Giovanni Giuseppe Marinho, superintendente do Patrimônio da União que esteve na cerimônia no dia 11, conta que há projeto para a criação do porto desde 2009.
A ideia chegou a ser apresentada no Senado em 2010 pelo então senador Roberto Cavalcanti (PRB-PB). “O porto é um projeto sério, é um projeto público”, diz Marinho. Segundo ele, na ocasião falava-se em investimento de R$ 4 bilhões.
“Há cerca de 20 dias o prefeito [de Mataraca, Egberto Madruga (PSB)] me convidou para esse evento. Até então, eu pensava se tratar do porto. Mas cheguei lá o projeto do porto ficou minúsculo perto do que se apresentou.”
E o porto deve ficar ainda menor perto da cidade. Quando a Folha questionou a empresa como atrairia 3 milhões de pessoas para a região, o CEO Jianing Chen pediu que a reportagem “amplie sua visão de mundo”.
Com desenvolvimento de indústria de alta tecnologia, diz, com direito a “pesquisa em fusão nuclear” e “desenvolvimento da indústria aeroespacial”, o “objetivo é que a nova cidade possa acomodar 35 milhões de pessoas” e “crie direta e indiretamente 20 milhões de empregos”.
Questionado de onde a empresa tiraria R$ 9 trilhões, Chen afirmou que, “quando o projeto começar, vocês vão ver quais consórcios de investidores estão envolvidos”, antes de emendar com um provérbio: “Grilos de verão não podem falar sobre o gelo, e sapos de poço não podem falar sobre o mar.”
E quantos funcionários trabalham na Brasil CRT hoje? “Venha ver quantos trabalhadores estarão em nosso canteiro de obras no próximo ano. Certamente isso irá satisfazê-lo”, foi a resposta dos chineses.
Que experiência em construção a empresa tem? “Os consórcios estão envolvidos em milhares de grandes projetos de construção internacionais. Quando você olha para baixo de um voo internacional, muitos dos grandes edifícios podem ter a presença do consórcio.”
Mas, com todo o rebuliço, o grandioso projeto dos Chen para a Paraíba ficou ameaçado.
Diante das suspeitas, os supostos investidores internacionais notificaram a Brasil CRT, diz Chen, para cancelar o empreendimento. “Iremos realizar outro projeto de investimento maior em outro estado do Brasil”, disse ele à reportagem.
THIAGO AMÂNCIO / Folhapress