Guel Arraes leva ‘Grande Sertão’ para a favela com adaptação para o cinema

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Grande Sertão: Veredas”, a obra-prima de Guimarães Rosa, está entre os livros mais citados nos sites brasileiros dedicados à literatura e aos aforismos.

Nesse banquete de petiscos roseanos, uma iguaria se destaca: os trechos sobre o sertão -não como espaço geográfico, mas como um território enigmático, uma espécie de labirinto metafísico “onde o diabo vige dentro do homem”.

Passagens do livro publicado em 1956 se tornaram célebres, como “sertão: é dentro da gente” e “o sertão é do tamanho do mundo”. Há um trecho, no entanto, menos conhecido: “Sertão é penal, criminal. Sertão é onde homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada”.

É esse universo selvagem tão pronunciado no livro, onde a matança é irrefreável, que Guel Arraes leva agora ao público. Seu “Grande Sertão” estreia nesta quinta-feira, dia 6, nos cinemas.

Ressaltar essa ferocidade, algo sem possibilidade de domesticação, como escreveu o crítico Silviano Santiago a respeito do livro, é uma opção que diferencia essa versão de Guel de adaptações anteriores. Exemplos são o filme de 1965, dirigido pelos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira, com Mauricio do Valle como Riobaldo e Sonia Clara na pele de Diadorim, e a minissérie de 1985, sob a direção de Walter Avancini e Tony Ramos e Bruna Lombardi nos papéis principais.

Mas existem outras apostas inovadoras neste projeto. Saem os jagunços que se arrebentam em terras inspiradas nas paisagens de Minas Gerais, Bahia e Goiás em um momento indeterminado do século 20. Entram os combates sangrentos entre policiais e bandidos em uma comunidade periférica de uma grande cidade nos dias de hoje.

Vivido por Caio Blat, Riobaldo é um professor de uma escola pública que deixa o ensino de lado para ingressar na gangue liderada por Joca Ramiro, interpretado por Rodrigo Lombardi. A mudança acontece, sobretudo, pela atração que ele sente por Diadorim –Luisa Arraes–, um amor que se expande em meio à violência e à aridez.

Até chegar ao cinema, a produção viveu uma saga iniciada em 2019. Após obter os direitos autorais do livro, Heitor Dhalia, cineasta e sócio da produtora Paronoid, sondou Guel no primeiro trimestre daquele ano para dirigir o filme.

“Eu pedi a ele duas ou três semanas para decidir. Eu pensava: ‘Que porta vou achar para entrar [na transposição para o cinema]? É como ‘Hamlet’. Depois de tantas montagens, por que fazer mais um Hamlet? Eu ficava agoniado”, lembra o diretor.

Parceiros há cerca de três décadas, Guel e Jorge Furtado criaram séries, como “A Comédia da Vida Privada” (1995), e fizeram roteiros para o cinema, como os de “Romance” (2008) e “O Debate” (2022). Em meio às dúvidas sobre a adaptação de Rosa, o pernambucano e o gaúcho se uniram para buscar um caminho e, em seguida, escrever o roteiro.

Havia àquela altura uma vontade dos dois de preparar um filme sobre a falta de segurança pública nas comunidades periféricas das metrópoles brasileiras. Um filme que não fosse retratado sob o ponto de vista da comunidade, como “Cidade de Deus” (2002), nem a partir do prisma da polícia, como primeiro “Tropa de Elite” (2007). Nas palavras de Guel, seria o “antifavela movie”.

Segundo ele, no Brasil, “a direita tem excesso de clareza sobre o que fazer na área de segurança. E está errada. E a esquerda não tem clareza nenhuma a longo prazo”.

A esse objetivo, juntou-se o impasse que exigia solução urgente: Como adaptar “Grande Sertão” de maneira original?

“Percebemos que a guerra dos jagunços é a mesma dessa aqui [das periferias urbanas]. É uma guerra de um rincão perdido do Brasil, onde o poder central não chega”, diz o diretor. Assim, ele continua, “a gente saiu do sociologismo, saiu de um registro documental e foi para outro patamar, sem precisar fazer análises. Fomos para a arte, para a poesia. Os dois problemas viraram uma solução”.

Definido o rumo, Guel e Furtado avançaram na escrita do roteiro, e outras áreas da produção começaram a ser mobilizadas, como a direção de arte, a cargo de Valdy Lopes. O plano era iniciar as filmagens em meados de 2020, mas em março daquele ano veio a pandemia, que não paralisou os trabalhos, mas os deixou em marcha lenta.

“No final das contas, foi melhor assim. Não estávamos preparados para fazer um filme tão complexo no prazo previsto inicialmente. Houve um amadurecimento”, diz o diretor sobre a produção cujo orçamento alcança R$ 17 milhões.

É a maior produção dirigida por ele, uma condição que terá vida curta. A sequência de “Auto da Compadecida”, com estreia prevista para dezembro deste ano, tende a superar esse valor, segundo Guel.

No caso de “Grande Sertão”, houve tempo para burilar, por exemplo, a persona de Diadorim. Como lembra a atriz Luisa Arraes, o livro é narrado por Riobaldo, e há pouquíssimas falas dele. “Só se conhece Diadorim por meio das opiniões e da paixão de Riobaldo. Eu queria ‘desidealizá-lo’, queria que fosse um personagem que, de fato, existisse”, ela conta.

Em meio às discussões com a equipe, a atriz criou um Diadorim tão corajoso quanto violento. “Fiz levantamento de peso por dois anos e fui moldando meu corpo. Fiquei forte, carregava o Caio [parceiro na vida pessoal e no elenco do filme] nas costas.”

O grande desafio foi incorporar esse universo masculino, que afasta das mulheres, por exemplo, o direito ao uso da força, diz ela. “Viver um homem foi como começar do zero.”

Aos 30 anos, Luisa assume pela primeira vez um papel mais extenso sob a direção de seu pai, Guel, 70 -ela havia feito uma pequena participação em “Lisbela e o Prisioneiro” (2003). A atriz lembra que foi convidada para o filme por Dhalia a partir da sua participação na montagem de “Grande Sertão: Veredas”, peça de Bia Lessa que rodou o país de 2017 a 2019.

No teatro, ela viveu outros personagens, não Diadorim que agora interpreta no cinema. Blat, por sua vez, era Riobaldo na peça, personagem retomado por ele no filme.

“Quando recebi o convite, fiquei meio constrangido de fazer de novo o mesmo trabalho. Mas levei um susto quando li o roteiro, vi que um universo [o de Guel] não tinha nada a ver com o outro [de Lessa], é uma outra realidade”, afirma o ator.

Já “O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho”, filme dirigido por Bia Lessa a partir da peça “Grande Sertão: Veredas”, também conduzida por ela, tem estreia prevista para 22 de agosto deste ano.

Além de Blat e Luisa, o elenco tem nomes como Luiza Lemmertz e Leonardo Miggiorin.

NAIEF HADDAD / Folhapress

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