Guerra do Sudão completa dois anos com quase 40 mil mortes e milhões com fome

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Pelo menos 14 milhões de pessoas foram deslocadas, cerca de 24 milhões estão em situação de insegurança alimentar e, somente no último mês, ao menos 63 pessoas -entre civis e militares- morreram por dia no Sudão.

O conflito entre as Forças Armadas Sudanesas (SAF) e as Forças de Apoio Rápido (RSF) eclodiu há dois anos, em 15 de abril de 2023, e, sem vias de um cessar-fogo, ameaça as frágeis democracias das nações no Chifre da África.

A disputa de poder entre Abdel Fattah al-Burhan, atual líder sudanês, e Mohamed Hamdan Dagalo, líder das RSF, já deixou pelo menos 37 mil mortos. De um lado, Burhan comanda um Exército com estrutura estatal. De outro, Hemeti -como é conhecido Dagalo- lidera uma guerrilha que, como o nome sugere, aposta em intervenções armadas rápidas e pontuais.

A dinâmica de avanços e recuos na conquista de territórios, resultado das convicções de ambos os generais na capacidade de vitória definitiva, é o que mais contribui para a manutenção do conflito. Segundo Lucas de Oliveira Ramos, especialista em segurança na África e doutor em relações internacionais pelo programa San Tiago Dantas, “os dois possuem capacidade e característica militares que não permitem um vencer o outro”.

Em meio ao vaivém da guerra, no entanto, os conflitos armados, o deslocamento forçado, a fome e a violência sexual deixam vítimas civis que representam ao menos 28,6% do total de mortos. Segundo o Banco de Dados de Localização e Eventos de Conflitos Armados (ACLED, na sigla em inglês), a média de mortes diárias diretamente relacionadas à violência de guerra no Sudão ultrapassa as 50 pessoas -são 37.226 nos últimos dois anos.

Desde a eclosão do conflito entre Burhan e Hemeti, a maioria das mortes foi causada por confrontos entre as duas forças, SAF e RSF, além de ataques com alvo em áreas civis, incursões aéreas (inclusive com drones) e combates nas tomadas e retomadas de territórios pelo país.

Em Darfur do Norte, as RSF assumiram no último domingo (13) o controle do campo de Zamzam -que abriga deslocados internos- após quatro dias de conflito no local. De acordo com dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM) das Nações Unidas, até 400 mil pessoas foram deslocadas, e só entre sexta-feira (11) e sábado (12) mais de 300 civis foram mortos.

Os dados, tanto de mortes quanto de desabrigados, feridos e violentados, são estimativas obtidas e agrupadas por organizações como a OIM e a ACLED. Em todos os casos, existe a possibilidade de subnotificação em razão da dificuldade logística e política de acesso à informação.

As mortes causadas pelos combates são uma parte do problema. O Sudão tem cerca de 49,4 milhões de habitantes. Desses, 24,6 milhões enfrentam altos níveis de insegurança alimentar -são 49,8% do país. Com o agravamento dos últimos meses, ao menos 8,1 milhões de pessoas estão em condição de emergência e outras 638 mil em situação catastrófica de fome.

De acordo com o Índice Global da Fome de 2024, o Sudão está em “um nível de fome grave”, na 110ª posição entre os 127 países listados. Na região oriental do continente, o país fica atrás somente de Somália, Madagascar e Zâmbia.

Segundo um relatório da Organização Mundial da Saúde, o aumento da pobreza alimentar na região acontece porque “o conflito dizimou terras agrícolas, a produção de alimentos e as instalações de armazenamento, reduzindo a disponibilidade e o acesso a alimentos”.

O pesquisador Ramos, que também é professor na Universidade São Judas Tadeu, pontua a falta de ajuda humanitária –inclusive após o fechamento da Usaid, agência de ajuda internacional dos EUA, por Donald Trump. “A população civil acaba saindo extremamente prejudicada” para além das consequências militares do conflito, segundo o especialista.

A OMS atribui a dificuldade de ajuda a ataques a trabalhadores humanitários e saques generalizados de suprimentos alimentares. Mais de 110 agentes foram mortos, feridos ou sequestrados desde o início do conflito, de acordo com dados da organização.

A situação alarmante do país é resultado de um conflito que vai muito além da política. Há muito dinheiro em jogo, principalmente proveniente da exploração de petróleo e, mais recentemente, da descoberta de grandes reservas de ouro no território em confronto. “É uma disputa de quem é que vai ocupar a cadeira do poder”, diz o pesquisador.

O anseio pelo domínio sobre o país e, consequentemente, sobre o território e as riquezas do Sudão é produto de uma equação iniciada há décadas. Tanto Burhan quanto Hemeti comandaram juntos, como líder e vice, o Conselho Soberano. O órgão foi criado para mediar a transição entre militares e civis após a queda de Omar al-Bashir, que capitaneou uma ditadura militar no país e só foi deposto quase 30 anos depois de seu golpe, em abril de 2019.

A incursão democrática sudanesa -com pouco mais de dois anos de caminhada-, no entanto, foi derrubada por um novo golpe. O primeiro-ministro, Abdalla Hamdok, até então respaldado pelo Conselho Soberano, foi preso pelos generais Burhan e Hemeti com a justificativa de que precisavam corrigir o rumo da transição e evitar uma guerra civil.

Ironicamente, ambos os líderes passaram a disputar o controle efetivo do Estado. A incorporação das RSF ao Exército -fator central do plano de transição democrática negociado anteriormente- foi o principal ponto de tensão, já que Hemeti evitou a subordinação imediata. O estresse político e institucional com Burhan explodiu no conflito interno que ambos diziam tentar evitar.

As negociações de cessar-fogo, desde 2023, não foram exitosas. O professor Ramos fala da necessidade de fortalecer a Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (IGAD) -órgão de cooperação regional da África Oriental- para possivelmente “demandar um cessar-fogo, conseguir que sentem para conversar e, enfim, atenuar o conflito”.

O vislumbre desse possível futuro é necessário, segundo ele, tanto para o próprio Sudão quanto para as nações vizinhas. Na região do Chifre da África, ainda estão Eritreia, Djibuti, Somália, Etiópia, Sudão do Sul, Quênia e Uganda. O conflito sudanês, também por conta dos refugiados, e especialmente devido às movimentações políticas, prejudica os países que “já têm uma situação bastante frágil do ponto de vista político, econômico e social”.

GABRIEL BARNABÉ / Folhapress

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