‘Guria da vila’ vê mulheres massacradas e cobra um Judiciário diverso

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A jurista, advogada e professora Soraia Mendes, 49, recebeu um convite para trabalhar em Brasília no final de 2005.

Na ocasião, já acumulava experiência nos tribunais do Rio Grande do Sul, sua terra natal, em causas ligadas aos direitos humanos. Assumiu cargo na consultoria jurídica do Ministério do Desenvolvimento Agrário, então comandado por Miguel Rossetto no primeiro mandato de Lula (PT).

Na pasta, como hoje afirma à Folha, contribuiu com a formulação de políticas afirmativas, em especial voltadas a comunidades quilombolas. “Embora ainda falte muito, aquelas políticas foram especialmente levadas em consideração para uma mudança de paradigma”, disse.

Os direitos humanos foram, de acordo com ela, um espaço de atuação escolhido para ver “concretizada a Constituição Federal”. “Dentro da perspectiva constitucional que tenho, são temas que compreendo estruturantes daquilo que a gente quer construir como sociedade livre, justa e solidária”, afirmou.

E temas que, de acordo com a advogada, dizem respeito à sua história de vida, ao lugar de onde veio. Filha de uma trabalhadora doméstica e de um operário, ela nasceu em Viamão, na região metropolitana de Porto Alegre. Uma “guria da vila”.

“Sou uma mulher que tem consciência de gênero, raça e classe”, afirmou.

As passagens pelo serviço público -além do governo federal, ela assessorou a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa gaúcha- são consideradas experiências importantes e que, em suas palavras, ajudaram a moldá-la, mas ela destaca, sobretudo, o exercício da advocacia e a vida acadêmica em sua trajetória.

“Cada vez que eu ia lá com um pedido judicial, e até hoje isso acontece, e a gente tem uma vitória, que é uma vitória pequena, mas uma vitória que aponta para a garantia de direitos, isso é o que me realiza.”

Soraia tem mestrado em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutorado em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e pós-doutorado em teorias jurídicas contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Não se beneficiou do sistema de cotas, inexistente quando do seu ingressou no ensino superior, mas defende a política inclusiva, “crédula de que a educação muda vidas, de que cotas abrem portas”.

Para a advogada, seu espaço de atuação profissional, o Judiciário, é um lugar, “sem dúvida, a ser democratizado”.

É compreender a democracia, observou ela, em um sentido mais amplo do que simplesmente o exercício de votar ou de ser votado, mas em uma perspectiva representativa, em que “todos e todas” têm de compor as mais diversas esferas dos Poderes.

Ela lembra que, a exemplo do que ocorre com o Legislativo, a parcela de mulheres e de pessoas negras no Judiciário é ínfima.

“A gente precisa ter mais mulheres, mais pessoas negras, mas não basta ser mulher, não basta ser mulher negra. Precisamos de mulheres e homens, de mulheres e homens negros comprometidos com a estrutura fundamental do texto constitucional”, afirmou.

Soraia diz que as questões de gênero e de raça não serão superadas sendo tratadas como se fossem única e exclusivamente responsabilidade das mulheres e das pessoas negras.

“Até porque, eu gosto da inversão de raciocínio que diz ‘não fomos nós, pessoas negras, que criamos o racismo, racismo é um problema das pessoas brancas’; elas criaram isso, elas devem resolver. E com a estrutura patriarcal também é a mesma coisa”, disse.

No tribunal, Soraia atuou em casos de repercussão como os da influencer Mariana Ferrer, da atriz Dani Calabresa e de Luana Barbosa do Reis, assassinada por policiais militares durante uma abordagem em Ribeirão Preto (SP), além das vítimas de assédio sexual dentro da Caixa Econômica Federal, durante a gestão Pedro Guimarães no governo de Jair Bolsonaro (PL).

Cuidou também da exitosa ação movida pelo PDT no STF (Supremo Tribunal Federal) que suscitou o recente debate na corte sobre decisões de tribunais do júri em que réus processados por feminicídio eram absolvidos sob o argumento da legítima defesa da honra.

A advogada afirmou que foi uma “imensa vitória”, apesar do fato de o tribunal ter que dizer, em pleno ano de 2023, que um homem não pode matar uma mulher por ciúme e alegar que é legítimo.

Destacou, no entanto, que há decisões judiciais, muito especialmente no âmbito do próprio STF, que acabam por trazer, por exemplo, maior flexibilidade às normas trabalhistas, de desconsideração da competência da Justiça do Trabalho.

“De maneira que eu, mulher, me sinto contemplada como uma decisão que vem num campo de direitos individuais, mas eu, mulher, como um sujeito dentro de uma determinada classe, sou alguém que continua sendo massacrada”, disse.

“A gente precisa de pessoas que compreendam essa outra dimensão, porque essa dimensão é a dimensão que faz com que a gente mude o status, que a gente saia do lugar onde nós estamos. Então, eu acho que o Judiciário, quando eu falo em democratização, eu estou falando nesse aspecto, de um reconhecimento de que existem direitos fundamentais para além dos individuais.”

Setores da sociedade civil, da política e do Judiciário defendiam o nome de Soraia para o Supremo, desfalcado desde a aposentadoria da ministra Rosa Weber -o presidente Lula, no entanto, decidiu pelo nome do ministro da Justiça, Flávio Dino, para a vaga.

Antes de a escolha ser definida, Soraia disse que não é candidata de si mesma, mas que seu nome e rosto servem a um “projeto de Brasil profundo”. “Gostaria muito que ele [Lula] considerasse essa possibilidade, de que chegasse lá [no STF] essa mulher, que é uma mulher negra e que é filha da classe trabalhadora, porque a gente precisa muito pensar sobre desigualdade”, afirmou na ocasião.

Raio-X | Soraia da Rosa Mendes, 49

Advogada e professora no ensino superior, tem mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutorado em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e pós-doutorado em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autora do livros “Criminologia Feminista” e “Processo Penal Feminista”.

MARCELO ROCHA / Folhapress

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