“Dentro desses 50 anos, eu destacaria a conquista de ser considerado música. No caso da música rap”. A frase dita pelo rapper MV Bill poderia causar estranhamento em quem não conhece bem a trajetória do ritmo, mas o caso é que o caminho para quem atua no segmento não foi simples e nem sempre o trabalho foi reconhecido.
O rap é um dos quatro elementos que compõem o hip hop. Junto estão o grafite, o break e o DJ. Esse movimento, ou cultura como alguns preferem, surgiu nos Estados Unidos há 50 anos, completos neste 11 de agosto, data considerada como o marco do surgimento.
“Eu lembro do Run DMC, uma das bandas icônicas desse movimento, quando eles conseguiram tocar ainda na década de 1980 no primeiro festival de rock nos EUA eles foram boicotados. Eu achava que só acontecia com a gente, mas eles chegaram no palco e não tinha a estrutura que precisavam porque as pessoas tinham essa ideia de olhar é rap ‘só precisa de dois microfones'”, diz.
Segundo MV Bill, considerado um dos grandes nomes do rap nacional, conseguir o reconhecimento para o rap enquanto música fez o panorama mudar bastante, nos últimos anos. “E o rap crescendo, o hip hop vai junto”.
A percepção não é apenas do músico. Jaqueline Lima dos Santos, antropóloga e organizadora do livro “Racionais MCs: Entre o Gatilho e a Tempestade” aponta que nas últimas décadas ocorreu o processo de reconhecimento da cultura hip hop como um importante fator de mobilização social.
“É um importante referencial para entender a sociedade, para mobilização da juventude. Por exemplo, a gente tem na universidade pessoas de diferentes áreas da economia, do direito, das ciências sociais, da educação e da linguística estudando porque o hip hop se torna uma lente para entender a sociedade”, diz.
Ela diz que é impossível entender o contexto das periferias urbanas dos anos 1990 e a violência na periferia sem ler ou ouvir Racionais.
Foi justamente uma ebulição cultural na periferia que deu origem ao movimento, só que neste caso, nos EUA. Em um contexto de completo abandono, desemprego, fome, miséria e transformação do espaço urbano de Nova York, a mistura de expressões artísticas ganhou corpo, nos EUA.
Em 11 de agosto em 1973 aconteceu uma das primeiras festas que uniu três dos quatro elementos do movimento rap, DJ e break.
O evento foi organizado pelo DJ jamaicano Kool Herc e sua irmã Cindy Campbell, em um prédio na avenida Sedgwick, no bairro do Bronx. O termo hip hop ainda não existia como uma unidade, mas a festa é considerada o marco inicial que uniu os diferentes segmentos do movimento.
Na época a juventude negra americana se via à margem da sociedade. Os EUA projetavam para outros países as suas expressões culturais através do cinema e música, por conta do poderio econômico do país. Embora o investimento de divulgação estivesse focado nos grupos de maior visibilidade social, um efeito colateral foi difundir junto essa cultura marginalizada.
Essas manifestações, muito atreladas naquele momento com jovens negros, encontrou eco nas periferias brasileiras, que viviam problemas similares. Em especial, São Paulo, que se tornou o grande polo de difusão do hip hop.
“A juventude começa a inventar as suas próprias formas de entretenimento dentro das suas comunidades”, afirma Santos.
Segundo ela, os mais velhos tinham os toca discos e os jovens se apropriaram deles e começaram a fazer festas nas ruas. “Durante essas festas, começaram a construir rimas falando da diversão, mas também começaram a narrar os problemas sociais”.
Para a antropóloga, as festas de rua ajudaram a consolidar o rap. Mas é o grafite o primeiro elemento que surge. “A juventude invisibilizada que não tinha direito a nada, que era criminalizada, começa a fazer marcas nos metrôs e nas paredes da cidade e aquilo virou uma onda”.
Nesta época, tudo estava acontecendo ao mesmo tempo nas festas. Era o DJ comandando as pickups, o MC mandado as rimas, a turma do breakdance se divertindo com seus passos de dança e os grafites apresentando a sua arte nas paredes dos prédios.
“As pessoas olharam para tudo aquilo e falaram que estava surgindo uma cultura de rua”, diz Santos.
Os bailes blacks foram a porta de entrada do hip hop no Brasil. A projeção de filmes nas paredes das festas mostravam o que acontecia durante o movimento pelos direitos civis nos EUA e isso influenciou a juventude negra brasileira.
Para Toni C., escritor e roteirista do documentário “Amarelo” protagonizado pelo músico Emicida, as pessoas são o hip hop e o movimento não nasceu em um único dia. “A expressão e tudo que diz respeito a ela é onipresente, ancestral e futurista”.
O escritor afirma que os toca discos viraram instrumento musical na mão de quem tinha sensibilidade artística, mas não tinha acesso a instrumentos musicais.
Segundo ele, o mesmo serviu para as artes plásticas. Para quem não tinha as telas e acesso às galerias sobraram os muros e paredes. “De maneira poética, é um pouco de como eu vejo isso”.
“Não consigo não conectar a teoria do geógrafo Milton Santos. Ele dizia que a revolução surgiria dos de baixo, construída com a sucata tecnológica da burguesia. É isso que o hip hop faz ou é isso que fez na década de 1980 e continua fazendo”.
Ao longo dos seus 50 anos o hip hop passou por cerca de quatro diferentes fases. Os Racionais MCs inauguram a primeira onda do movimento no Brasil. A segunda foi marcada pela denúncia do racismo e desmistificação da democracia racial. A terceira pela afirmação do orgulho de ser periférico. E a quarta, já nos anos 2000, com o maior acesso aos bens de consumo, o movimento passa a falar sobre outros temas.
Enquanto nos EUA nomes como Kool Herc, Afrika Bambaataa e Grandmaster Flash são lembrados como alguns dos ícones que marcaram o início do movimento por lá. Aqui no Brasil, além dos Racionais MCs, Thaíde, DJ Hum, Sharylaine e Dina Di são citados como alguns dos pioneiros.
Para MV Bill durante muito tempo o rap foi considerado música de protesto, mas com o tempo isso foi mudando.
“Eu entrei no rap quando era muito essa pegada, mas o crescimento fez com que mudasse um pouco. Hoje tem essa necessidade de ter [denúncias de problemas sociais] ainda nas letras, mas não é mais uma regra”.
Ele afirma que durante muito tempo o rap era o único estilo musical que denunciava as desigualdades sociais e raciais, mas que com o passar dos anos e a chegada de novos nomes outros assuntos passaram a compor as letras de rap.
“Mas eu acho que o rap de mensagem nunca morreu e, pelo tipo de país que a gente tem, nunca morrerá”.
Toni C. lembra que o hip hop hoje é uma modalidade olímpica já que o breaking vai estrear nas próximas Olimpíadas, em 2024, em Paris. “Está nas universidades, com Racionais MCs sendo considerado leitura obrigatória para o vestibular da Unicamp e o Emicida dando aula na Universidade de Coimbra, em Portugal”, afirma.
TAYGUARA RIBEIRO E PRISCILA CAMAZANO