Haddad diz que Brasil é truculento e que rico tem que pagar mais imposto que pobre

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Elogiado no mercado financeiro e entre o empresariado por causa da reforma tributária e do arcabouço fiscal, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirma que a discussão sobre a segunda etapa da mesma reforma, que se propõe a mexer em renda e patrimônio, enfrentará resistência muito maior de setores que hoje o aplaudem.

“Mas nós vamos divulgar os dados”, afirma ele. “Como um país com tanta desigualdade isenta de imposto de renda o 1% mais rico da população?”, questiona.

Haddad diz que a primeira etapa da reforma já equivale ao “Plano Real” do terceiro governo de Lula, comparando a medida com o controle da inflação no governo de Fernando Henrique Cardoso.

Mas admite que o desafio fiscal “é grande”. O próprio Tesouro Nacional vê a necessidade de arrecadação extra de R$ 162,4 bilhões para que o governo cumpra um de seus maiores compromissos: o de zerar o déficit público em 2024.

Questionado se não terá que aumentar impostos, ou cortar investimentos, ele afirma que o governo buscará “corrigir distorções absurdas do sistema tributário” para cumprir a meta. Aponta como exemplo “escândalo patrimonialista dos mais execráveis” em regras que beneficiavam empresas no julgamento de suas dívidas com a Receita Federal.

“Estamos promovendo a republicanização do estado brasileiro”, afirma o ministro.

Ele diz ainda que a taxação da distribuição de lucros e dividendos, que pode atingir a classe média, será discutida com “cautela”. E reafirma que o Banco Central tem dificultado o crescimento do país ao manter as taxas de juros em patamares altos. “Mas ele, um dia, acorda”.

Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.

*

CLASSE DOMINANTE

PERGUNTA – Uma pesquisa recente da Quaest mostrou que a sua avaliação positiva, que era de 10%, saltou para 65% entre agentes do mercado financeiro. O senhor sempre foi um crítico contundente da elite econômica brasileira, definindo-a como “Casa Grande” e dizendo que “ela é Bolsonaro”. Quem mudou? O senhor ou eles?

FERNANDO HADDAD – O Brasil é um país truculento. A natureza da nossa sociedade é violenta, embora nem sempre isso seja admitido e verbalizado.

Houve uma mudança social importante no país [na última década]. Novos protagonistas chegaram aos altos escalões do Estado brasileiro, graças ao maior acesso às universidades, entre outras conquistas.

E a ascensão do Bolsonaro foi, de certa forma, uma reação ao fato de as portas se abrirem a quem nunca se sentou à mesa.

No Brasil, a classe dominante sempre resistiu à formação de uma classe dirigente distante de interesses particulares de setores e grupos específicos, como ocorre em países ricos e desenvolvidos.

Tanto é verdade que a classe dirigente imperial entregou o Estado brasileiro à classe dominante como indenização pelo fim da escravidão.

Seria bom para o país que tivéssemos uma classe dirigente plural, que pudesse enxergar a floresta sob diversos pontos de vista. E não apenas as árvores.

Toda vez que há real alternância de poder no Brasil, ocorre essa tensão porque a classe dominante se sente expropriada de algo que pensa que é dela, que é o Estado brasileiro.

P – Mas neste momento não há tensão, apenas elogios. A reforma foi pró-mercado?

FH – Bom, alguém, no teu lugar, poderia fazer a pergunta oposta: “Houve aumento real de salário mínimo, correção da tabela do imposto de renda, aumento de bolsas de mestrado e doutorado, volta do Minha Casa, Minha Vida. Será que você não está recuperando muito rapidamente os programas sociais do governo Lula?”.

Na verdade, nós estamos procurando achar uma linha fina.

Acabar com o teto de gastos é uma reforma pró-mercado? Fazer uma reforma tributária ansiada há 30 anos é pró-mercado?

Tem coisas que são boas para todo mundo, inclusive para o mercado.

Nosso desafio é recuperar a tese que vigorou nos mandatos anteriores do presidente Lula, de que os de baixo ganharem um pouco mais não significa os de cima perderem. Significa caminhar na direção de uma sociedade mais equilibrada.

REFORMA TRIBUTÁRIA

P – Mas a situação hoje é adversa e é remota a possibilidade de se repetir o crescimento de governos anteriores de Lula, quando todos podiam ganhar de fato.

FH – Mas o Brasil deve e pode crescer mais. E a reforma tributária é essencial para isso.

É um marco histórico, que já foi comparado por economistas, sem exagero, com o “Plano Real” do governo chamado Lula 3.

E, de fato, o impacto da reforma será da mesma proporção em termos de eficiência econômica.

Os investidores não vão esperar cinco anos pelos efeitos dela [referindo-se ao prazo de transição para que as mudanças sejam implantadas]. Eles vão olhar e dizer: “Bom, o país tomou jeito. Entendeu e resolveu o problema”.

P – A segunda parte da reforma deve mexer com patrimônio e renda, ou seja, no bolso. Será possível aprová-la? Há dez anos, quando tentou aumentar o IPTU como prefeito de SP, o senhor se disse socialista e a favor da distribuição de renda, mas que a Casa Grande não deixava isso ocorrer na velocidade necessária.

FH – Eu sou de centro-esquerda, eu tenho uma concepção de sociedade muito diferente da que a gente vive. É lógico que ao longo dos anos eu mudei. Mas meu compromisso com o tema da emancipação das pessoas, de que cada ser humano merece sonhar, projetar um futuro, é um compromisso de vida.

P – Mas prevê resistência?

FH – É claro. Mas nós vamos divulgar os dados. Você acha que um brasileiro que é rico, tem residência no Brasil e dinheiro fora, não tem que pagar pelo rendimento de um fundo offshore pessoal? Por quê? Qual é o sentido?

E os fundos exclusivos, em que uma pessoa delega as cotas para os seus descendentes e não paga imposto de renda nunca? São coisas que chamam a atenção do mundo sobre o Brasil.

O trabalhador hoje está isento [de imposto de renda], graças ao presidente Lula, até R$ 2.640. Você ganhou R$ 2.650, já paga. E uma pessoa que ganha R$ 2.640.000,00 está isenta?

Como um país com tanta desigualdade isenta o 1% mais rico da população? Qual vai ser o dia em que nós vamos olhar para o problema e resolvê-lo?

P – O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, vai se empenhar por esta parte da reforma como o fez pela outra?

FH – O Congresso, que vai dar a última palavra, sabe o seguinte: quando você está vivendo um ciclo de bonança, tem para todo mundo. Agora não tem. E a sua omissão vai significar uma pessoa a mais com fome.

É justo eu cortar o salário mínimo do Bolsa Família para manter uma isenção, repito, que não existe em nenhum outro lugar, a não ser em paraíso fiscal?

TAXAÇÃO DE LUCROS E DIVIDENDOS

P – Há uma expectativa grande sobre a taxação da distribuição de lucros e dividendos, hoje isenta. Isso será revisto?

FH – Isso vai ser endereçado com mais calma porque não dá para tomarmos uma medida sem considerarmos os impactos no imposto de renda da pessoa jurídica.

Uma parte da classe média se organizou em torno dessa “pejotização” e seria fortemente atingida.

É por isso que tem que ser uma coisa muito bem-feita, de forma cautelosa, discutindo com a sociedade. E também, provavelmente, com prazo de transição, de adequação, de coibição de planejamento tributário, que é feito única e exclusivamente para abusar do instituto jurídico para fins particulares.

Não dá para fazer de forma atabalhoada. Primeiro porque pode não sair. E segundo porque pode não produzir os resultados que nós desejamos.

Nós não vamos ter pressa em relação a isso.

P – Então demora bastante, pelo visto.

FH – Não, porque já tem muito estudo sobre esse assunto.

IMPOSTOS E ORÇAMENTO

P – O Tesouro Nacional divulgou um relatório dizendo que a meta do governo de zerar o déficit primário em 2024 exigirá arrecadação adicional de R$ 162,4 bilhões e contingenciamento de despesas de R$ 56 bilhões. Que garantias o governo dá de que não haverá aumento de impostos e cortes no orçamento? Ou a meta pode não ser cumprida?

FH – Os dados [do Tesouro] estão um pouco superestimados do ponto de vista das despesas, embora o desafio seja grande.

Mas o conjunto de medidas que estamos mandando para o Congresso Nacional está muito bem fundamentado.

O Carf [referindo-se ao projeto em debate que altera regras dos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, beneficiando o governo nas disputas com contribuintes], por exemplo, era uma projeção no começo do ano. Já é uma certeza.

Há vários acordos pré-estabelecidos com devedores importantes [de impostos] e que aguardam a definição do Congresso.

Vamos disciplinar a decisão do STJ [Superior Tribunal de Justiça, que deu ganho ao governo em uma causa de R$ 90 bilhões contra empresas].

P – Ainda assim, é tudo uma projeção.

FH – Uma coisa é quando você faz uma projeção de algo que está em processo. Outra é quando você já tem uma decisão [legislativa ou judicial], e a Receita Federal faz a projeção.

Até por dever de ofício, a Receita é sempre muito conservadora para fins de elaboração do Projeto de Lei Orçamentária.

Nós estamos fazendo projeções bastante tímidas em relação ao potencial de arrecadação [de 2024].

No caso dos jogos [referindo-se à nova tributação de apostas esportivas], só para você ter uma ideia, acreditamos que vamos arrecadar entre R$ 6 bilhões e R$ 12 bilhões. Mas, para o Orçamento, vamos considerar apenas R$ 2 bilhões, justamente para não gerar insegurança. No caso do STJ, será incluído no Orçamento pouco mais da metade do previsto.

P – O Boletim Focus, que resume as expectativas do mercado, mostra que há uma descrença dos agentes sobre o déficit zero. A projeção é de um déficit de 0,8% em 2024.

FH – Mas pega as projeções deles do começo do ano para o déficit de 2023. Era de 1,8%. Foi caindo até chegar a 1%.

E eu já dizia em janeiro que terminaríamos o ano com cerca de 1% de déficit. As pessoas foram ajustando as suas previsões. Lembra disso?

P – É um compromisso, então, “firmado em cartório” o de que não haverá aumento de imposto?

FH – O que eu disse, e repito, é que nós estamos corrigindo distorções absurdas do nosso sistema tributário [o que levará a um aumento de arrecadação].

O Brasil era o único país do mundo que tinha privatizado a sua Receita Federal [referindo-se à regra de que o empate no julgamento de uma dívida de impostos no Carf favorecia as empresas, tirando do governo o voto de desempate].

Chegou a ponto de suspendermos o diálogo com a OCDE [Organização Para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que reúne os países desenvolvidos] porque ela não aceitaria, dentre seus membros, um país com a Receita Federal privatizada.

Era um escândalo patrimonialista dos mais execráveis, uma das heranças péssimas do governo anterior que está sendo corrigida.

Lobbies poderosos sofreram derrotas importantes. Estamos promovendo a despatrimonialização e a republicanização do Estado brasileiro.

Seu próprio partido, o PT, teme que a busca do déficit zero gere cortes de investimentos.

Vamos nos lembrar que tem uma banda [que flexibiliza a meta]. Se for de R$ 5 bilhões o déficit, está dentro da banda. Se for R$ 5 bilhões de superávit, está dentro da banda.

O BC

P – E as despesas?

FH – Nós vamos apresentar um Orçamento um pouco menor do que previmos inicialmente porque a inflação caiu muito.

O Banco Central manteve o juro na estratosfera. E isso faz com que a projeção de crescimento econômico para o ano que vem seja um pouco menor do que nós imaginávamos.

O Banco Central está atrasado, mas ele, um dia, acorda.

P – O crescimento neste ano, apesar de ainda tímido, surpreendeu. Mas veio sobretudo do agronegócio. Já o consumo das famílias vai ter a pior variação desde a pandemia. Ou seja, não se vislumbra qualquer “espetáculo do crescimento”.

IsFH – so [forte crescimento] depende mais da autoridade monetária [o Banco Central, que define os juros], que hoje é independente, autônoma, do que do governo.

Do nosso ponto de vista, e do ponto de vista de todo mundo que produz, o ciclo de baixa dos juros já deveria ter começado. Porque não há nenhuma ameaça inflacionária no horizonte.

P – Há duas visões sobre o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Uma delas diz que, graças à ortodoxia dele, não existe hoje ameaça inflacionária. Já no governo há autoridades que o definem como um agente engajado em manter os juros altos para comprometer o crescimento e a gestão de Lula. Com qual das duas o senhor concorda?

A gestão do Banco Central será analisada sob dois aspectos: no governo passado, a taxa Selic [que define os juros] foi fixada em 2%. Muita gente celebrou, mas o câmbio se descontrolou. E hoje essa taxa está fixada em 13,75%, com a inflação caindo fortemente.

Mesmo quando subiu [em 2022, durante a sucessão presidencial], ela ficou abaixo da inflação. Ou seja, a taxa real de juros ficou negativa por um longo período. E agora ela está sistematicamente acima da inflação —que vem caindo. Se a taxa se mantém no mesmo patamar nominal, significa que a taxa real praticamente triplicou

Essa discussão técnica vai ocupar os economistas de hoje, de amanhã. E é evidentemente esse tipo de inquietação percorre a mente das pessoas.

P – De Roberto Campos ser um agente desestabilizador?

FH – De ter um viés. Será que se o governo Bolsonaro tivesse sido reeleito, o tratamento seria esse? É uma pergunta que boa parte da classe política faz hoje.

Eu nem posso fazer essa pergunta porque eu tenho que tratar com o corpo técnico e com os diretores do Banco Central. E esse tipo de especulação subjetiva não me ajuda.

O que me ajuda é sentar e falar: “Olha, a taxa de juro real no Brasil está em 10%. E não existe nenhuma economia do mundo que resista a uma inflação de 3%, 4%, com essa taxa real de juro. Pode comprometer, inclusive, o ajuste fiscal”.

P – Ainda que os juros comecem a cair, como se espera, seus efeitos só serão sentidos depois de muito tempo. As famílias seguirão endividadas, com pouco espaço para gastar, e o crédito seguirá restrito.

FH – É verdade que, sobre o gasto primário do governo, sobre o consumo das famílias, uma queda de taxa de juro no curto prazo tem pouco efeito. Mas não sobre o investimento. Quando a curva de juro começa a cair, as empresas conseguem ir a mercado contratar taxas futuras [menores que as atuais]. Portanto o investimento, que é a variável chave de uma retomada do crescimento, pode acontecer desde já.

Nós saímos do questionamento “será que [a taxa de juros] vai baixar” para “quando vai baixar” —e, agora, para “quanto vai baixar”. A pergunta foi mudando, o que já é um avanço.

MÔNICA BERGAMO / Folhapress

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