‘Herege’ propõe terror eficiente apesar do didatismo excessivo

(FOLHAPRESS) – Você só precisa de alguns poucos minutos para perceber a cilada em que se encontram as duas protagonistas de “Herege”. Jovens missionárias mórmons, elas passam o dia vendendo a sua religião de porta em porta, mas traem as regras ao entrar na casa de um dos estranhos que visitam.

As garotas atravessam o batente para fugir da chuva, que só piora, mas também porque o senhor, vivido por Hugh Grant, parece interessado na conversão. Para uma delas, a irmã Paxton, é a chance de conseguir sair do zero na missão -a sua colega, a irmã Barnes, já converteu oito ou nove pessoas. Que fria.

Entre o cansaço e a ambição, as duas se convencem de que o homem está acompanhado da esposa em casa, uma regra importante de suas visitas. Mas basta a câmera passear pela sala de estar para o espectador notar que aquele cara não é confiável.

Nada no recinto está fora do lugar, mas a casa não tem janelas e a disposição dos poucos móveis é esquisita. Para piorar, logo se percebe que a eletricidade funciona por temporizadores, que desligam a luz de tempos em tempos.

A situação lembra “João e Maria” e esse parece mesmo o ponto de partida do filme -embora não seja a sua linha de chegada. Assim, aos poucos, “Herege” se mostra o trabalho mais mirabolante de Scott Beck e Bryan Woods, que estouraram a primeira vez com o roteiro do primeiro “Um Lugar Silencioso”.

Mirabolante define mesmo os esforços da dupla, que entre um longa e outro aprenderam a valorizar mais a reviravolta como motor da narrativa. A trama existe para a tensão na casa, que aumenta conforme a conversa religiosa desanda, e cada informação nova só piora a situação das garotas vividas por Sophie Thatcher e Chloe East.

Mas o mais intrigante em “Herege” é a figura do dono da casa. A performance soturna de Grant, ator hoje tão ligado à comédia, é um diferencial e tanto ao personagem, que ganha vida na língua de serpente.

Lá pelas tantas, o filme existe para instigar o público a descobrir o que aquele senhor esquisito deseja com as missionárias, que avançam pela casa a contragosto -elas descobrem da pior forma possível que a porta da frente não abre por um suposto defeito na trava.

Como o título bem sugere, o interesse do dono da casa mora no próprio papo de religião. Na melhor cena do longa, Grant faz um extenso monólogo sobre a hipocrisia dos credos de hoje, criticando as diversas coincidências que ligam os seus diferentes tipos.

O seu discurso lembra um stand-up e martela as iterações de um culto ao outro de forma bem-humorada, ainda que este efeito só amplie o suspense. De vítima, sobram sacaneadas para a história da música pop e do jogo “Banco Imobiliário”, que amarram a tese do hospedeiro com a acidez necessária.

A produção então ganha corpo nessa afronta ao credo alheio, com Beck e Woods aproveitando do debate para dentro do conflito das garotas com o homem. A trama orbita entre o esforço das meninas para fugir e o jogo do sequestrador, que se materializa em cena em uma grande maquete.

Nisso, “Herege” tem algo dos testes de fé dos filmes de M. Night Shyamalan, ainda que sob uma ótica de puro ceticismo ateu. O paralelo faz sentido dado a fábula que é o primeiro “Um Lugar Silencioso”, mas aqui os cineastas transparecem isso pela direção, armando as peças do tabuleiro com calma e humor. O primeiro plano do longa, por exemplo, transforma um diálogo simples sobre sexo em uma piada visual bem enquadrada.

É uma pena então que o longa desande a partir do momento em que termina de revelar as suas ideias e precisa fazer algo em torno delas. A história inventa percalços para as meninas e para o dono da casa, mas começa a andar em círculos à espera da resolução de seus mistérios.

Os diretores também subestimam a inteligência do público e recheiam o longa de lembretes visuais e diálogos expositivos para amarrar tudo na trama. A situação fica tão grave que na reta final a sensação é de que Grant deixa a posição de ameaça para virar um papagaio professor para as meninas.

Nada disso bota abaixo “Herege”, que tem revelações suficientes para divertir o espectador mais interessado. Mas a insegurança das ideias transparece demais na condução, o que é um pecado grave a qualquer produção que se proclame elaborada.

HEREGE

Avaliação Bom

Quando Estreia nos cinemas nesta quinta (21)

Classificação 16 anos

Elenco Hugh Grant, Sophie Thatcher e Chloe East

Produção EUA, 2024

Direção Scott Beck e Bryan Woods

PEDRO STRAZZA / Folhapress

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