‘Hoje, imposto do pobre custeia a gestão de resíduos do rico’, diz conselheiro da ONU

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O serviço de coleta de resíduos é pago diretamente pela própria população em boa parte do mundo, mas não no Brasil, onde o custeio sai da receita geral dos impostos, o que gera distorções no sistema, segundo o advogado Carlos da Silva Filho, presidente da Associação Internacional de Resíduos Sólidos (ISWA, na sigla em inglês) e membro do Conselho Consultivo do Secretário Geral da ONU sobre resíduos.

“Não temos justiça tributária nesse processo. Não importa se você gera mais ou menos resíduo, se faz separação e coleta seletiva ou compostagem, a mesma parcela que sai do meu imposto, sai do imposto de todo mundo para custear a gestão de resíduos”, explica ele.

Com isso, diz, o imposto pago pelas das pessoas de classes mais baixas, que produzem menos resíduos, custeia a coleta das classes mais altas, que geram mais que o dobro dos resíduos dos mais pobres.

Os brasileiros produzem cerca de 80 milhões de toneladas de resíduos por ano, quantidade suficiente para encher cerca de 2.000 estádios do Maracanã daquilo que se convencionou chamar de lixo. Cada vez mais, esses resíduos são vistos como fontes importantes de matérias-primas e de energias renováveis, num processo de transformação alinhado à sustentabilidade, a novos modelos de negócios verdes e à economia circular.

Em entrevista à reportagem, um dos maiores especialistas do tema do mundo fala sobre a ligação da má gestão de resíduos com a crise do clima, as limitações do atual modelo de reciclagem brasileiro e a necessidade de coordenação entre consumidores, indústria, comércio e governo, cada um dentro das suas responsabilidades pela geração de resíduos que poluem o planeta e emitem gases de efeito estufa, agravando a crise climática.

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PERGUNTA – O Brasil gera quase 80 milhões de toneladas de resíduos por ano, e estimativas apontam que essa produção vai aumentar aqui e em todo o mundo. Quais são os seus motores?

CARLOS DA SILVA FILHO – Esse aumento se deve ao crescimento econômico e será maior nos países em desenvolvimento, que é justamente onde não temos as infraestruturas disponíveis para lidar com todo esse aumento de geração de resíduos sólidos. Se a gente não conseguir dissociar o crescimento econômico da geração de resíduos sólidos, nós estamos perdidos. Temos de fazer política de 3 Ds: dissociar o crescimento econômico da geração de resíduos, descarbonizar essas operações e desintoxicar os materiais para permitir uma maior reciclagem. Muitas das barreiras para reciclagem são justamente os aditivos e elementos químicos que tornam certos materiais componentes tóxicos.

P – O país recicla apenas 4% dos resíduos sólidos urbanos. Qual é a responsabilidade das empresas pela reciclagem dos resíduos gerados pelos produtos que elas colocam no mercado?

CSF – Existe um princípio no direito ambiental que é o do poluidor-pagador. Ou seja, aquele que traz o impacto ao meio ambiente tem de arcar com o custo de mitigar este impacto. Na lei brasileira, optou-se por uma interpretação desse princípio, que é a da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos. Nela, todo mundo entra na mesma cesta: o usuário, o poder público, a indústria e o comércio. Na prática, quem deve ser considerado o poluidor-pagador? Se for o usuário que compra e descarta, teríamos que ter um processo de educação e conscientização ambiental para um consumo consciente das pessoas. Se for a indústria que coloca este produto no mercado, ela pode fazer escolhas de produtos mais ou menos amigáveis ao meio ambiente. Acaba um empurrando o problema para o outro.

P – omo resolver esse impasse?

CSF – Precisamos colocar o dedo na ferida e definir de uma vez por todas a quem cabe esse custo. Em alguns países, existe o princípio da responsabilidade estendida do produtor, que é muito claro: quem coloca no mercado tem a responsabilidade de custear o processo de retorno. Em fóruns internacionais, já se fala que mesmo isso ainda não é suficiente. No Brasil, vamos precisar de um aprimoramento dos nossos conceitos. Existe um sistema rodando cujos recursos não estão chegando na ponta para o catador, que é o trabalhador que presta esse serviço ambiental.

P – No Brasil, estima-se que 9 a cada 10 quilos de materiais que chegam para a reciclagem são trazidos por catadores. Como valorizar esse trabalho?

CSF – Somos um país continental, com 200 milhões de habitantes, em que uma parcela considerável da população ainda vive abaixo da linha da pobreza e encontra ocupação tanto no setor informal da catação de resíduos como setor formal de gestão de resíduos sólidos, que é um dos maiores empregadores desta camada mais vulnerável da população. Esse setor informal teve protagonismo numa prestação de serviços ambientais que o setor formal não quis assumir porque a conta não fecha. O custo da operação é muito maior do que a própria receita da venda destes materiais. Mas, para quem está numa situação de vulnerabilidade, isso é uma receita. Essa camada da população se especializou nisso e, hoje, executa este trabalho com excelência. Eles são os que mais entendem deste processo de triagem, de separação e de reciclagem. Porém, batemos num teto.

P – Como assim?

CSF – A capacidade produtiva desse sistema de catação, da forma como está, manual e, eu diria, ainda muito desumano, não está progredindo. Precisamos pensar em modelos inovadores de negócios em que os catadores sejam sócios e possam trazer sua expertise para ampliar esse serviço. Em vários países do mundo, o serviço de coleta é pago pela população.

P – Por que no Brasil não funciona assim e quais as consequências disso?

CSF – O serviço de gestão de resíduos tem custo em qualquer lugar do mundo. Não é grátis. Hoje, no Brasil, esse serviço é pago a partir da receita geral dos impostos, e nós não temos justiça tributária nesse processo. Não importa se você gera mais ou menos resíduo, se faz separação e coleta seletiva ou compostagem, a mesma parcela que sai do meu imposto, sai do imposto de todo mundo para custear a gestão de resíduos. A nossa legislação determina a cobrança do serviço de gestão de resíduos. Onde você implementa essa cobrança, de partida, já acontece uma redução na geração de resíduos de pelo menos 10%. A pessoa começa a perceber que, se ela gerar menos, vai pagar menos. E a gente sabe que a parte do corpo que mais dói é o bolso.

P – Como convencer as pessoas dessa necessidade?

CSF – A gente precisaria que hoje a população já paga por esse serviço, e o dinheiro que sai do cofre público, no qual o imposto do pobre custeia a gestão de resíduos do rico. Gestão de resíduos é um serviço público como qualquer outro e deve ser pago pelo consumo, pela geração. Quem gera mais, paga mais. Se você não fizer coleta seletiva na sua casa, vai pagar mais. E, com isso, a gente subsidia todo o sistema de maneira mais eficiente.

P – Como a má gestão de resíduos se relaciona com a crise climática?

CSF – O principal fator de emissão de gases de efeito estufa na gestão de resíduos sólidos é o metano emitido pela decomposição da matéria orgânica. O metano é o que a gente chama de poluente de vida curta: tem persistência na atmosfera de 20 anos, mas potencial de aquecimento 86 vezes maior do que o do dióxido de carbono (CO2). Se o mundo não mitigar emissões de metano, a gente não vai mais conseguir controlar a meta de aquecimento de 1,5°C. O metano é a bola da vez para conseguir reduzir o aquecimento global. E o setor de resíduos é o terceiro maior emissor de metano, atrás de agricultura e do setor de óleo e gás. O contraponto disso é que, como o terceiro maior emissor, o setor é muito relevante para reverter esse impacto e tem o melhor custo-benefício para reduzir essas emissões.

P – Como reverter essas emissões?

CSF – O potencial de mitigação do setor vai de 20% a 25% das emissões totais de gases de efeito estufa no planeta. A primeira ação direta efetiva é o fechamento de lixões porque eles emitem descontroladamente. O segundo passo é uma gestão de orgânicos porque a matéria orgânica é a que mais emite metano e corresponde a 50% do total de resíduos produzidos pelos brasileiros. Isso começa com a captação do biogás em aterros, mas ruma para o desvio de orgânicos dos aterros para processos de biodigestão e compostagem que evitam a emissão. O terceiro é reduzir a geração e ter um aproveitamento dos resíduos como recurso, rumo a uma economia circular.

P – Como o modelo de economia circular entra na gestão de resíduos?

CSF – Não é reduzir o consumo para reduzir os resíduos porque, no atual modelo econômico, você reduziria o crescimento econômico junto. A mudança está em fazer o negócio de maneira diferente. Já temos algumas iniciativas, mas é algo pontual. Primeiro, porque não vejo incentivo político e econômico para essa mudança acontecer. É muito mais discurso porque o modelo atual continua conveniente para todas as partes. A indústria tem acesso à matéria-prima, o consumidor tem materiais leves e descartáveis, que você coloca numa sacolinha na porta de casa e eles desaparecem. E os governos já têm esse custo na sua matriz, então continuam fazendo do mesmo jeito. Para que mudar?

P – É uma inércia?

CSF – O que ouço da indústria é que essa mudança tem que acontecer em bloco, senão cria-se concorrência desleal. A dissociação que precisamos fazer implica mudar modelo de negócio, padrão de consumo, e romper algumas conveniências.

P – Quais?

CSF – A facilidade de sair e comprar o que eu quiser a um custo superacessível, ou de não precisar retornar um vasilhame, ou de não ter que me preocupar em devolver um produto para seu sistema de logística reversa. Por que a sociedade mudou para o modelo do descartável? Porque é conveniente. Eu simplesmente compro, uso, descarto e acabou.

P – Qual é o papel do governo nessa mudança de paradigma?

CSF – São dois papéis fundamentais. O primeiro é o indutor da mudança. Se a gente deixar simplesmente para o mercado, a mudança não vai acontecer. O segundo é ser o fiscalizador da mudança. Temos a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que é o indutora da mudança, o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), com metas, algumas bastante ambiciosas. Só que o nosso governo tem falhado reiteradamente de ser um fiscalizador, em todas as esferas, federal, estadual e municipal.

Tanto é que 2 de agosto de 2024 deveria ser o prazo final para não termos mais lixões no Brasil, e ainda temos 1.500 lixões a céu aberto. Ou seja, a medida indutora aconteceu, mas a medida fiscalizadora não aconteceu. Por que nós só temos 4% de reciclagem? Porque o governo não tem exercido o seu papel fiscalizador, de garantir que todos os setores industriais estejam envolvidos com logística reversa. Em alguns setores, ela está acontecendo, mas uma boa parte da nossa indústria que não está nem aí e ninguém está no pé deles.

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RAIO-X

Carlos da Silva Filho, 46, é advogado, presidente da International Solid Waste Association (ISWA) e conselheiro da ONU para a área de gestão de resíduos. É coordenador-geral do Atlas Mundial de Resíduos Sólidos, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e coautor o livro “Gestão de Resíduos Sólidos: o que diz a lei” (Jurídicos Trevisan Editora).

FERNANDA MENA / Folhapress

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