SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Justiça de São Paulo condenou a Cacau Show a indenizar em R$ 50 mil um homem que, após ser injustamente acusado de importunação sexual por funcionários da empresa, acabou preso e teve de mostrar o pênis a policiais civis e militares, em uma espécie de reconhecimento peniano.
Trata-se de uma decisão de primeira instância, portanto cabem recursos contra a sentença do juiz Fábio de Souza Pimenta, da 32ª Vara Cível da capital, publicada no início deste mês. Procurada, a Cacau Show disse que ainda analisa quais medidas deve tomar.
O consultor financeiro Felipe Passos, 45, foi preso em 23 de abril do ano passado, ao término de um passeio ciclístico entre São Paulo e Itapevi (Grande SP). Como a parada final do circuito era em uma loja da Cacau Show na cidade, Passos decidiu tomar sorvete no local.
Minutos depois, conforme consta no processo, o consultor começou a escutar um burburinho entre os próprios colegas ciclistas sobre um fato inusitado. Um homem teria mostrado o pênis para uma funcionária da loja, manejado e colocado o membro sobre o balcão onde a moça trabalhava.
Acionada, a Polícia Militar foi até a loja. Para surpresa de Passos, o gerente o apontou como responsável pela importunação sexual. A notícia causou indignação até entre os próprios colegas do ciclista.
“Eu fiquei meio em choque na hora. Poxa, eu não tinha feito nada”, afirmou Passos à reportagem.
Na delegacia, conforme contou à reportagem, Passos repetiu ao delegado Rogério Pereira de Oliveira o que havia falado aos PMs ainda na loja: ele nada tinha feito, até porque usava macacão com a abertura do zíper pelas costa e, assim, só conseguiria mostrar o pênis tirando praticamente toda a roupa.
A explicação não adiantou, porque a suposta vítima, Vitoria Cardoso, 22, apresentou uma testemunha, Harison Souza, 19, colega de trabalho que disse que também teria visto o consultor mostrar o pênis.
Passos foi, então, levado para uma cela na própria delegacia onde, conforme conta, foi obrigado a mostrar o pênis para as escrivãs. As funcionárias, supostamente a pedido do delegado, queriam confirmar as características do membro que a vendedora havia relatado em interrogatório.
Segundo o advogado Ronan Bonello, defensor de Passos, o consultor precisou mostrar o pênis ao menos três vezes para duas escrivãs e a PMs, em momentos distintos, e só não realizou o quarto reconhecimento porque a defesa, já no local, se opôs.
“Ela [suposta vítima] falava que o pênis dele era preto. Aí, você vê o cara é loiro, de olhos verdes. As investigadoras mesmo falaram: É a primeira vez que temos que ver o pênis de um cara para ver se é pênis preto ou não. As próprias investigadoras ficaram indignadas. Mas é o delegado quem manda. Então ele mostrou o pênis para praticamente a delegacia toda”, disse Bonello.
Em audiência na Justiça sobre a ação por danos morais, os PMs que atenderam à ocorrência confirmaram ao juiz Fábio de Souza Pimenta que houve averiguação de pênis.
“O delegado pediu que eu e a escrivã, acho que escrivã, fôssemos até a cela para ver a cor do pênis dele. Porque parece que tinha uma dúvida lá, que ela [vítima] tinha falado que o pênis dele era preto. Aí eu falei: mas o rapaz é branco. Aí fui junto com a escrivã para fazer essa averiguação”, disse o PM Elton Soares Coelho, atendendo às perguntas de Tatiana Gobbi Maia, também defensora de Passos.
No mesmo depoimento, o policial disse ao magistrado que, quase no final da noite, o gerente da Cacau Show entregou a cópia de um vídeo de câmera de segurança que demonstraria a suposta ação. As imagens, de péssima qualidade, não mostram em nenhum momento Passos exibindo o pênis.
O mais próximo disso é a imagem de Passos ajeitando a roupa aparentemente na região da virilha, um gesto que dura décimos de segundo.
“Eu vi as imagens que chegaram depois. Eu, juntamente com o delegado lá, vi algumas imagens. Meu parceiro de viatura também viu. Assistimos os vídeos, mas não constatava nada. Pra gente, então, nada demais”, afirmou o PM durante audiência.
Mesmo com as imagens contrariando o relato da suposta vítima, o delegado decidiu manter o flagrante para a ele, a “filmagem apresentada mostra que o homem faz um movimento bem rápido de abaixar a parte da frente do short, o que em conjunto com declaração da vítima e com o depoimento da testemunha Harrison demonstra, em sede de cognição sumária, que o fato ocorreu”.
“Cita-se por oportuno que a palavra da vítima nos casos de crimes contra a dignidade sexual é muito importante, haja vista que esta modalidade de delito é considerada crimes [cometido] às ocultas. O relato da vítima é firme e coerente no sentido de confirmar a importunação sexual”, continuou.
O delegado não menciona no documento que a megaloja em questão é um local público com capacidade para mil pessoas e que Passos não vestia short ou bermuda, mas sim um macacão. Também não menciona que o consultor negava ter cometido o crime.
Passos foi mandado para uma prisão onde dividiu a cela com cerca de 15 pessoas, segundo ele, e teve receio de sofrer violência por parte dos outros detentos. Ele foi solto só no dia seguinte na audiência de custódia. O caso foi arquivado na esfera criminal a pedido do Ministério Público.
“Corri risco de vida lá dentro da prisão. Me colocaram numa cela, [com] um monte de preso. Vieram os presos na grade, perguntaram o que eu tinha feito, não sei o quê. Aquele trauma psicológico”, disse Passos.
Acionada por Passos na esfera cível, a Cacau Show disse ter analisado as imagens entregues à polícia e não detectou o crime alegado pelos funcionários. Chamados para dar explicações, ambos teriam admitido ter mentido contra o cliente, motivo pelo qual ambos teriam sido demitidos. A jovem nega.
“Ao ser questionada acerca do ocorrido, sra. Vitória Cardoso confirmou que havia mentido, sem apresentar justificativa plausível. Diante disso, a Promotoria também questionou a testemunha, o sr. Harison Souza, que por sua vez confessou que não presenciou o acontecido, tendo sustentado a versão apresentada pela sra. Vitória dado ao vínculo de amizade que mantinha com a mesma”, diz trecho do documento.
A empresa alegou à Justiça, porém, que não tinha responsabilidade pela prisão do consultor porque apenas acionou a polícia e foi ela quem decidiu pelas medidas que julgou necessárias.
A defesa de Passos representou criminalmente contra os funcionários e estuda outras medidas judiciais contra pessoas que atacaram o consultor nas redes sociais.
RECONHECIMENTO DO TIPO NÃO TEM PRECEDENTE LEGAL, DIZ SSP
Procurada, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo não negou nem confirmou que tenha ocorrido o suposto reconhecimento peniano de Passos. Disse apenas que não há registro de que isso tenha acontecido e que o método não está previsto em lei. “A Polícia Civil esclarece que não há registro nem precedente legal para a dinâmica de reconhecimento mencionada pela reportagem.”
“Na época dos fatos, a autoridade policial ouviu a vítima, uma testemunha, o autor e demais partes envolvidas na ocorrência. Um pendrive com imagens de câmeras do estabelecimento comercial foi apreendido e o vídeo, analisado pelo promotor de Justiça. O caso foi arquivado pelo Poder Judiciário em maio de 2023 e demais detalhes devem ser verificados com a Justiça”, acrescentou.
Já a Cacau Show disse estar “avaliando os próximos passos”.
“Reforçamos que a prisão não foi requerida pela Cacau Show. O senhor delegado de polícia de plantão com base nos depoimentos das partes entendeu que havia indícios de crime e, com base em sua convicção, determinou a prisão”, afirmou.
“No que tange aos depoimentos dos ex-funcionários somente eles podem esclarecer as razões que os motivaram a fazer as acusações”, finalizou a Cacau Show, em nota enviada à reportagem.
Procurada, Vitoria Cardoso disse estar passando por um período de luto e por isso não queria comentar o assunto. Resumiu, porém, que pediu demissão da Cacau Show há cerca de um ano por enfrentar problemas de saúde. E negou que tenha mentido.
“Sei que não menti em momento algum. Deus sabe e creio na Justiça de Deus.”
A reportagem sugeriu a indicação de um advogado ou alguém que pudesse falar em nome dela, mas isso não aconteceu até a publicação deste texto.
Harrison Souza também foi localizado, mas não quis comentar o assunto.
ROGÉRIO PAGNAN / Folhapress