SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Homenagens a ações antidemocráticas ou a expoentes da ditadura, como o Dia do Patriota em 8 de janeiro ou a do estado de São Paulo para honrar o coronel Erasmo Dias, ferem preceitos fundamentais da Constituição, segundo especialistas.
Apesar disso, a Lei da Anistia abre brechas para o tributo a expoentes da ditadura militar (1964-1985), já que concedeu perdão a agentes do Estado perpetradores de abusos durante o regime.
Dois casos recentes tiveram repercussão.
Em Porto Alegre, a Câmara local aprovou lei que instituiu o 8/1, marcado por ataques golpistas, como Dia Municipal do Patriota. Diante da repercussão negativa, a Câmara voltou atrás. No mesmo dia, o ministro Luiz Fux, do STF, barrou a lei, alegando que a data deve ser repudiada, e não comemorada.
Já no estado de São Paulo a Assembleia Legislativa aprovou e o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) promulgou lei que prestou homenagem a Erasmo Dias, expoente da ditadura militar, regime responsável por torturas e mortes no país e defendido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
Segundo Carolina Cyrillo, professora de direito constitucional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), tanto a proposta de lei de Porto Alegre quanto a de São Paulo são incompatíveis com o Estado democrático de Direito defendido pela Constituição.
“A democracia não admite que se macule de nenhuma maneira os direitos humanos. É evidente que prestar homenagem a um torturador ou a pessoas que querem dar um golpe é incompatível com o sistema inaugurado pela Constituição de 1988”, afirma.
Para Cyrillo, apesar de as ações serem inconstitucionais, homenagens a expoentes da ditadura seguem acontecendo porque a sociedade brasileira ainda não assimilou corretamente o que foi a violação dos direitos humanos durante o período.
De acordo com Pedro Horta, advogado e professor de direito constitucional no Complexo Damásio, homenagens antidemocráticas ferem preceitos fundamentais da Carta. Entretanto, a Lei da Anistia justifica alguns tributos, como o planejado pelo estado de São Paulo a Erasmo Dias.
Nesta semana, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, determinou que o governo Tarcísio explique a promulgação da lei de junho de 2023 que nomeou um entroncamento de rodovias em Paraguaçu Paulista de “Deputado Erasmo Dias”.
O pedido foi motivado por uma ação movida por partidos de oposição, como o PT e o PSOL, os quais sustentaram que a homenagem ao expoente da ditadura fragilizaria preceitos fundamentais da Constituição.
Depois da repercussão negativa, Tarcísio afirmou que o governo fez uma análise técnica do pedido e não encontrou vícios na iniciativa.
Erasmo Dias foi um dos fundadores da Arena, partido político da situação na época do regime, e responsável por organizar ações de caça a militantes de esquerda.
Ele também foi secretário de Segurança Pública de SP de 1974 a 1979, quando ficou conhecido por comandar uma invasão à PUC-SP contra o movimento estudantil.
Nascido em Paraguaçu Paulista (SP), foi deputado federal de 1979 a 1983, deputado estadual de 1987 a 1999 e vereador de São Paulo, de 2001 a 2004. Ele morreu em 2010, aos 85 anos.
Helena Lobo da Costa, professora de direito penal da USP, afirma que o artigo 287 do Código Penal pode ser acionado para sancionar homenagens antidemocráticas. O artigo veda a apologia de crime ou criminoso.
Mas, como a anistia impediu que agentes do Estado fossem oficialmente considerados criminosos pelos abusos cometidos, algumas ações relacionadas a essas pessoas podem ser difíceis de tipificar.
No caso de homenagens como a que propôs a Câmara de Porto Alegre, entretanto, fica evidente o enquadramento na legislação.
“Com relação ao 8 de janeiro, para mim é muito claro de que se trata de uma apologia à prática de crime, porque o que preponderou no 8 de janeiro foi a invasão aos edifícios que corporificam os três Poderes da República, de forma violenta e com destruição de patrimônio”, afirma Costa.
Para Julia Gumieri, historiadora e pesquisadora do Memorial da Resistência de São Paulo, apesar da brecha legal, esse tipo de homenagem não é compatível com o Estado democrático de Direito e o respeito aos direitos humanos.
“Precisamos construir um conhecimento mais humanitário da nossa história que nos permita esse entendimento de que a tortura é um ato de barbárie. Não cabe, num lugar humanitário e democrático, homenagear pessoas que quebraram o pacto social de não tortura”, afirma.
Segundo ela, mesmo que lacunas na lei possam permitir algumas homenagens, a sociedade não deve fazer isso sob pena de transmitir o recado incorreto de que a ação de torturadores é legítima.
De acordo com levantamento do Ditamapa, projeto dos artistas Giselle Beiguelman e Andrey Koens, o Brasil tem mais de 500 locais, como escolas e ruas, com nomes de presidentes militares que governaram durante a ditadura.
“Não é possível que uma criança frequente uma escola pública de primeiro grau, como a Emílio Garrastazu Médici, e isso não signifique nada. O nome das coisas diz respeito a uma presença delas no cotidiano. O objetivo principal do Ditamapa é enfrentar a camada de naturalização dessa história no nosso dia a dia”, afirma Beiguelman.
ANA GABRIELA OLIVEIRA LIMA / Folhapress