CANOAS, RS (FOLHAPRESS) – Funcionários do Hospital Pronto Socorro de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, viveram momentos dramáticos há três semanas, quando precisaram salvar suas vidas, retirar com rapidez 101 internados e mais cem pessoas, além de cachorros, que buscaram refúgio no local contra a cheia.
Instalado no bairro Mathias Velho, que ainda está submerso e com resgate ativo de animais e desaparecidos, o hospital foi inundado e teve todo o térreo destruído.
O diretor-técnico do conjunto, Álvaro Fernandes, entrou no estabelecimento nesta segunda-feira (20) pela primeira vez desde o pesadelo que viveu do dia 2 a 4 de maio, quando ajudou a coordenar a evacuação dos cerca de 400 presentes, que saíram às pressas de barcos e helicóptero pelo segundo andar do edifício.
“Saí de lá de barco com o hospital totalmente inundado. Hoje [segunda] senti um misto de tristeza por ver o hospital daquela forma, devastado, e de felicidade, por ter conseguido seguir o lema de não deixar ninguém para trás”, diz. Ele foi o último a sair e calcula ter ficado dois dias e meio sem dormir.
O HPSC é referência para 102 cidades gaúchas, atendendo principalmente a região metropolitana. Trata de traumas graves, como de pacientes que sofrem acidentes de carro, fraturas cranianas, no abdômen, entre outros. Em média, passam por lá 4.200 pessoas por mês, sendo mais de 440 admitidas para internação.
As três ambulâncias com água ainda na altura das rodas no pátio do hospital dão uma pista do estado do interior do prédio. Os corredores compridos, silenciosos e sem luz viram um cenário macabro, como do filme “Ensaio sobre a Cegueira”, com o diferencial de estar alagado, com mais ou menos 30 centímetros de altura de água. A reportagem entrou no hospital nesta segunda.
Luvas boiam na água suja ao lado de seringas ainda cheias, rãs, sapatos médicos perdidos, bolsa de soro, aparelhos de radiologia e outros utensílios de enfermagem. A sala vermelha, que atende pacientes mais graves que chegam ao pronto-socorro, tem 10 metros quadrados de destruição. As macas brancas ficaram marrons e com forro danificado. Há respiradores no chão, aparelhos de raio-x e monitores quebrados, submersos e cheios de lama.
Até o domingo (19), a água estava na cintura, então poucas pessoas haviam entrado no local, resguardado a resgatistas que ainda rondam a região de barco. A lentidão para a água esvair agora é contrária à rapidez com que avançou na madrugada de sexta (3) para a manhã de sábado (4), há três semanas, quando o Rio Grande do Sul vivia o momento inicial do pânico da cheia.
“Por volta da meia-noite de sexta, já tinham evacuado uma unidade de saúde a uma quadra de nós. Uma enfermeira tinha me alertado que a água estava borbulhando no bueiro. A prefeitura não achou que fosse acontecer o que aconteceu. Às 5h de sábado, a água invadiu o hospital. Cinco horas depois, a água havia chegado no teto”, conta o diretor técnico do hospital.
Relembrando a cronologia da destruição, Fernandes relata que havia um alerta de evacuação da prefeitura para a quinta-feira, mas que, em meio ao caos informativo, ele teria sido cancelado, e depois retomado na sexta-feira. Em nota, a prefeitura afirma que só emitiu um alerta para a região do bairro na sexta e que, ao longo do dia, ampliou para mais regiões, até chegar a evacuação total.
“Temos UTIs em cima e embaixo, só que o gerador fica embaixo e o elevador não iria funcionar, então descemos todos os pacientes para o térreo. Eram 18 na UTI, os mais críticos eram uns nove, com ventilação mecânica, sedados”, diz. Só que a água entrou com muita violência o e o resgate terrestre se mostrou impraticável poucas horas depois. “Levamos todo mundo para cima de novo, subimos manualmente os acamados pelas escadas.”
Os barcos de voluntários e de bombeiros demoravam cerca de meia hora para fazer o trajeto até o local seco mais próximo, onde os pacientes eram enviados para o hospital da Ulbra (Universidade Luterana do Brasil). Pela água, eles buscavam as pessoas no segundo andar do prédio.
“Conseguimos, então, resgate por helicóptero, tiramos algumas crianças, mas não temos área de pouso adequada. Vimos que não tínhamos efetividade em descer um por um, então voluntários abriram um buraco a marretadas na parede, e as pessoas conseguiram sair por esses buracos para entrar nas embarcações.” A corrida contra o tempo foi aliviada com a chegada do Exército.
O hospital é municipal e tem administração terceirizada, com licitação contratada pela Prefeitura de Canoas. Algumas empresas já sondaram os dirigentes para saber o custo estimado do que havia no local naquele momento. A direção avalia que, somente de material, o prejuízo seja de R$ 30 milhões a R$ 35 milhões. A cifra não inclui mobília, tecnologia da informação, encanamento, tubos de aspiração, de oxigênio, entre outros.
O governo do estado também discute como reequipar o local. Em visita à cidade no sábado (18), Arita Bergmann, secretária de Saúde do estado, afirmou que os equipamentos perdidos poderão ser substituídos por meio de doações de hospitais de outros estados para a rede de saúde. Na ocasião, ela afirmou que ainda não sabe se o hospital deve ficar no mesmo lugar ou se mudar.
Das 400 pessoas salvas, duas morreram, mas segundo a instituição, a causa não teve relação direta com a cheia. Eram pacientes com morte encefálica que tiveram problemas com ventilação.
Segundo levantamento da Folha de S.Paulo com base em dados do IBGE e de mapeamento da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), 54 pontos de saúde foram atingidos pela cheia em Canoas, o que representa 16,6% do total. Os bairros de Mathias Velho e Rio Branco são os mais afetados e ainda estão debaixo d´água. Cerca de 42% das casas de Canoas foram atingidas.
PAULA SOPRANA E BRUNO SANTOS / Folhapress