HQ ‘Ivo a Mis Les Voiles’ mostra que só se morre quando se é esquecido

SOROCABA, SP (FOLHAPRESS) – Cerca de 3.100 quilômetros separam o Rio de Janeiro de Belém, capital do Pará. Seriam necessárias 43 horas de viagem ininterruptas de carro para fazer esse percurso. É o caminho que será percorrido por Pedro, um jovem carioca que parte com um grupo de amigos pelas estradas do Nordeste atrás do mecânico Ivo, após descobrir sua morte.

Em “Ivo a Mis Les Voiles” –Ivo Partiu, em tradução livre–, história em quadrinhos escrita e desenhada pelo franco-brasileiro Nicolaï Pinheiro, acompanhamos um jornada de entendimento, luto, descoberta e não esquecimento por parte do protagonista.

Filho de pai brasileiro e mãe francesa, Nicolaï nasceu em 1985, no Rio de Janeiro, onde cresceu em contato com as duas culturas. Mas, como toda criança brasileira, se desenvolveu na leitura através da Turma da Mônica. “Foram minhas primeiras leituras, e que continuei lendo e relendo até a adolescência. Ainda releio às vezes com nostalgia e admiração pelo trabalho”, comenta.

Ali, nasceu a vontade de desenhar e tentar fazer disso sua vida. Passou a adolescência consumindo o típico quadrinho de super-herói americano que ainda domina as bancas, como Batman, Homem-Aranha, X-Men. Nicolaï conta, no entanto, que o ponto de virada aconteceu aos 14 anos, quando ganhou de presente uma história em quadrinho do mestre do erotismo italiano, Milo Manara.

“O que fez explodir a minha cabeça naquele momento foi descobrir que podia se fazer uma história em quadrinhos que não se passava nem nos Estados Unidos, nem em alguma cidade grande. Dava para fazer histórias como um filme europeu, um filme de autor, algo que que saísse dos trilhos de uma narrativa tradicional.”

Depois de uma infância e adolescência rabiscadas, chegou à França aos 18 anos, em 2008, para estudar artes visuais. Um pouco mais tarde, começou a publicar tiras na imprensa e, em 2010, lançou seu primeiro álbum de quadrinhos, “1907”, pela E&C Editions.

De lá pra cá, são pouco mais de 13 anos de carreira dedicados aos quadrinhos e outros oito álbuns publicados. “Ivo a Mis Les Voiles” é seu trabalho mais recente, lançado há pouco mais de três semanas pela editora Sarbacane.

É a segunda história que Nicolaï escreve que se passa no Brasil, a primeira foi “Lapa la Nuit” –Lapa a Noite, em tradução livre. Mas a história do mecânico que desapareceu pelas estradas do nordeste brasileiro tem uma carga simbólica muito maior na vida do quadrinista.

Nicolaï adapta em seu novo trabalho, o romance “Cemitério de Navios”, escrito por seu pai, Mauro Pinheiro e publicado em 1993 pela editora Rocco. “Apesar de ser um romance, é baseado na relação do meu pai com o pai dele, ou seja, com o meu avô. E eu, 30 anos depois, vou retomar essa história como se o meu pai me passasse o bastão, que de certa maneira foi dele mesmo, antes dele, foi do pai dele e agora segue seu rumo pela minha versão e pelos meus traços”, afirma.

A obra narra a busca de Pedro pelos rastros de Ivo. Não se sabe quem é Ivo, não se sabe onde ele morreu, só sabemos que ele morreu. Para Nicolaï, a morte de Ivo reflete o que foi a existência do personagem. “Ele foi um homem que viveu na estrada, sem nunca conseguir criar raízes. Ele bebia muito, fumava muito, e no final da vida dele, ele sofreu de um câncer da garganta. Enfim, ele foi um homem misterioso, porque ele era um homem ausente, inclusive para os amigos, para a família, um homem que nem sempre sabia onde estava, e quando estava não sabia quanto tempo ia ficar.”

É nessa jornada de conhecimento, que Pedro parte por algumas respostas e descobrindo mais dessa figura, que, apesar de distante e abstrata, está no imaginário de todos os conhecidos com quem ele cruzou. “Em seguida, como em toda boa história de viagem, acontecem encontros imprevistos, aventuras, amizades e muitas coisas mais”, diz o autor.

Com 160 páginas e tamanho 21,5 × 29 cm, a HQ é toda colorida em tons de amarelo e laranja, lembrando o desbotado de fotografias antigas. Estética que casa bem com o tom noventista da obra.

E, apesar da arte mais realista e lembrando nomes como o espanhol Jordi Lafebre –desenhista de “Verões Felizes”, HQ publicada pela editora Pipoca e Nanquim–, Nicolaï prefere caracterizar seu trabalho como “expressionista”. “Eu procuro dar aos meus personagens a maior expressividade possível, esse é o meu primeiro objetivo, e logo depois vem um certo gosto estético, digamos, por aquilo que a gente poderia chamar o estilo”, diz.

A história, segundo o quadrinista, levou um ano e meio para ficar pronta. Nicolaï conta que veio ao Brasil em 2021 e fez a mesma viagem que Pedro faz na história para entender os caminhos, as paisagens e ser fiel na sua representação.

O autor também complementa que seu traço é inspirado, além do italiano Manara, em Moebius e no francês Cyril Pedrosa –autor de “Três Sombras”, obra lançada pela Companhia das Letras.

Questionado sobre os desafios de adaptar uma obra tão pessoal, diz que a sempre achou o livro do pai bom. “Tinha um estilo literário interessante, isso eu tive que adaptar no quadrinho, mas, antes de mais nada, é uma bela história. E foi isso que eu tive vontade de contar e de contar da minha maneira”, diz.

Ele afirma que desde o início teve a bênção do pai. “Ele ficou surpreso com a ideia que eu tive. A gente bateu vários papos sobre o livro, falando mesmo da história dos personagens, foi super interessante. Quando você adapta uma obra assim, você não precisa ter o autor da obra original à disposição, você pode fazer sem, mas no meu caso, eu tinha ele à disposição e tornava tudo ainda melhor”, diz.

Apesar das origens brasileiras e de uma longa carreira nos quadrinhos franceses, as obras de Nicolaï nunca chegaram ao Brasil. Ele diz que esse é um sonho que quer concretizar, mas ainda não existem diálogos com editoras locais.

IVO A MIS LES VOILES

Preço: €26 (160 págs.)

Autoria: Nicolaï Pinheiro

Editora: Sarbacane

LUCAS MONTEIRO / Folhapress

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