HQ ‘O Filme Perdido’ celebra o cinema e inventor pioneiro com 21 estilos de desenho

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “A Chegada do Trem à Estação” é uma das imagens mais famosas do cinema desde a sua criação no fim do século 19. É também uma cena poderosa. Diz a lenda que quando os irmãos Auguste e Louis Lumière exibiram o filme de 50 segundos pela primeira vez, em 1896, o público saiu correndo. Por um momento, acharam que a máquina invadiria o recinto e os atropelaria.

Depois de 129 anos, a cena é refeita nas páginas do quadrinho “O Filme Perdido”, lançado pela Companhia das Letras durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Na graphic novel de Cesar Gananian e Chico França, o trem aparece em diversos momentos da história.

A primeira vez é a mais impactante, fazendo jus à imagem do monstro metálico que assombrou a exibição dos Lumière. Desenhado em carvão, o trem surge envolto em uma fumaça preta e espessa, pintado em traços tão grosseiros quanto a técnica permite. A sensação é de que a máquina nasceu naquele momento, rugindo por meio de apitos e motores para fora da caverna onde deu os seus primeiros passos.

É no interior daquela besta ferroviária que descobrimos o protagonista do livro, o francês Louis Le Prince. Ele foi um dos pioneiros na invenção do cinema, mas sua história termina muito antes da fundação da sétima arte.

Em 1890, Le Prince desapareceu no meio de uma viagem a Paris. Ele levava a sua versão do cinematógrafo —como é chamado o ancestral da câmera filmadora— para uma apresentação nos Estados Unidos. Até hoje, ninguém sabe o que aconteceu com Le Prince e sua importância foi apagada da história.

Gananian descobriu esse mistério há dez anos, quando começou a escrever o livro. Mas o inventor não foi o pontapé do projeto. O autor tinha uma ideia mais ambiciosa, que envolvia homenagear o primeiro centenário do cinema.

Ele procurava alguma inspiração quando leu a frase de que a humanidade, no fim das contas, escreve um grande livro ao longo das décadas. “A partir disso, comecei a imaginar um galpão abandonado, onde eram encontrados vários rolos de filme, e um projeto de cineastas que filmavam uma história ao longo de cem anos”, diz Gananian. “Seria como uma colcha de retalhos, onde cada diretor teria feito uma cena diferente.”

Essa estrutura é a grande surpresa de “O Filme Perdido”, que passeia por diferentes estilos de ilustração em suas páginas. A cada mudança de traço, um movimento célebre do cinema é homenageado, desde o expressionismo alemão até os filmes marginais do Brasil, como os de Carlos Reichenbach.

As abordagens de cada movimento são a parte mais fascinante. O cinema russo dos anos 1970 e 1980, que tem como seu maior autor Andrei Tarkovski, ganha vida nas páginas em belos retratos desoladores de tinta a óleo. O neorrealismo italiano, por sua vez, surge em rascunhos a lápis nas páginas brancas.

No meio dessa maratona, quem guia a história é Le Prince. O livro imagina na trama que o diário do inventor foi achado pouco depois de seu sumiço e, a partir daí, cineastas de todo o mundo e de todas as épocas se interessaram por ele. Para Gananian, foi a forma de mostrar que a história da sétima arte está encapsulada no pioneiro.

“Le Prince representa na história o pequeno inventor, e por isso mesmo ele se encaixa em todos esses movimentos. Ele é o cinema iraniano, a animação tcheca e o cinema de invenção brasileiro. Ele tem esse lado do cinema criativo, livre e inventivo, mesmo não tendo visto nada disso em vida.”

O autor demorou cinco anos para estruturar a história, escolhendo quais movimentos seriam usados em que partes da jornada de Le Prince. Ele não se preocupou em criar uma biografia do inventor, mas conceber um clima de paranoia em torno da questão das patentes, que era uma das preocupações da época.

Gananian também não se preocupou em seguir uma ordem cronológica nas homenagens, o que fica nítido na sequência inicial. O livro começa com o cinema mudo dos Lumière, avança para o noir e depois salta para filmes coreanos contemporâneos.

“Foi libertador, porque senão seria muito chato”, afirma Gananian. “Essa foi uma das primeiras decisões que tomei. Cada cineasta escolheria um trecho do diário e faria a seu jeito, e isso deu um dinamismo muito divertido ao trabalho.”

O autor também tinha outra certeza desde o início —a de trabalhar apenas com Chico França nas ilustrações da graphic novel. Com 21 seções diferentes, ele precisava de alguém que pudesse ser versátil para encontrar os estilos particulares de cada movimento.

Isso sem contar o ritmo. Segundo a dupla, o primeiro capítulo demorou oito meses para ser produzido. “Você tem que captar o espírito de cada um daqueles cinemas”, afirma França, que recorda de ter usado as obras do quadrinista Will Eisner como inspiração para o noir.

“Você precisa trazer alguma particularidade, algum toque que seja característico do movimento para o leitor reconhecer de imediato. Para isso, algumas vezes usei não só o cinema em si, mas alguma relação possível com os quadrinhos.”

“A gente não queria se repetir. São 21 estilos e tem, por exemplo, três momentos do cinema mudo” diz Gananian. “O primeiro, francês, a gente foi no carvão. O segundo, russo, a gente fez inteiro no formato de pôsteres soviéticos. Aí o alemão, que vem lá no fim e é o último dessa época, Chico teve a ideia de desenhar com um lápis branco em um papel preto. Assim, conseguimos surpreender o leitor.”

O processo também teve empecilhos. O capítulo do cinema coreano, por exemplo, teve que ser refeito inteiro, depois que os dois perceberam que as cores não saltavam aos olhos. “A ideia era colorir digitalmente, porque pensamos em comentar o cinema digital do país”, diz Gananian. “Mas as cores não tinham vida. Depois de três tentativas, decidimos refazer, e aí veio a ideia de aproveitar parte da estrutura e pintá-la como aquarela.”

O caso mostra como a relação entre roteirista e desenhista foi bastante próxima nos cinco anos que a dupla levou para completar o trabalho. Os créditos na capa brincam com a dinâmica de Gananian e França —enquanto o último assina como responsável pela arte, o primeiro é creditado como roteirista e diretor.

“A gente decidia quadro a quadro juntos, nos reuníamos sempre para definir os enquadramentos e como íamos guiar essa história”, diz o ilustrador. “Era como se o Cesar dirigisse e eu fizesse um pouco de tudo, de figurino a atuação, de cenografia a direção de arte.”

O FILME PERDIDO

Preço R$ 139,90 (312 págs.); R$ 50 (ebook)

Autoria Cesar Gananian e Chico França

Editora Quadrinhos na Cia.

PEDRO STRAZZA / Folhapress

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