SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Kate Beaton tinha 21 anos quando se formou em Humanas. Precisava pagar o financiamento estudantil, um peso nas costas. Em Cape Breton, ilha no leste do Canadá onde nasceu e cresceu, as oportunidades de emprego a deixariam em dívida eterna.
Ela foi trabalhar na área onde havia trabalho de sobra e bom salário: petróleo. Especificamente na indústria de extração do petróleo cru das areias betuminosas na província de Alberta, do outro lado do Canadá.
A região tem uma das maiores reservas do óleo no mundo, em torno de 1,7 trilhão de barris. O método de extração causa prejuízo ambiental imenso, que inclui desmatamento de quilômetros de floresta, aumento das emissões de carbono e resíduos tóxicos que contaminam os próprios trabalhadores.
A imensa maioria destes operários era homem, às vezes em proporção de 50 para cada mulher. Ambiente nada receptivo para uma jovem de 21 anos, como Beaton. Ela, porém, precisava de emprego.
Na graphic novel “Patos: Dois Anos nos Campos de Petróleo”, ela conta o período em que trabalhou como ferramenteira, em escritório e em outras funções nos campos.
Longe de casa, no frio extremo e morando em pequenos alojamentos -como milhares dos que trabalhavam ali- Beaton viu os efeitos do isolamento e da depressão, além de acidentes de trabalho que a empresa escondia em relatórios maquiados e abuso de drogas. Sentiu parte disto na pele, principalmente a testosterona descontrolada no local. Ela foi estuprada duas vezes, e retrata as duas situações quase como momentos banais, parte do fluxo local.
O nome “Patos” vem de uma matéria do New York Times que circulou na época em que Beaton trabalhava nos campos. Ignorando todos os abusos com operários, a matéria destacava a morte de 300 patos em uma lagoa de resíduos.
Beaton vem de uma carreira de quadrinhos cômicos para a internet que começou há quase vinte anos -quando ela ainda trabalhava nos campos. Seu site Hark, A Vagrant trazia tiras que faziam deboche de figuras históricas ou da literatura, com um humor típico dos memes online.
Patos vem depois do fim de Hark, A Vagrant e, apesar do tema autobiográfico e sério, não deixa o humor de lado. “Se fosse muito sombrio, não ia ser honesto”, a autora conta em entrevista por email. “Se eu omitisse a verdade de como aquele lugar às vezes era brutal, também não ia ser honesto.”
Ela conta que o quadrinho, mesmo com mais de 400 páginas, teve vários cortes no momento da edição. “Mas eu pedi que as páginas de humor ficassem, mesmo quando não faziam a história avançar. Humor era essencial”, diz.
Pegadinhas entre os funcionários dos campos se misturam a cenas como as de violência sexual. No posfácio, a autora escreve que, apesar de carregar aqueles momentos como traumas, “a triste verdade é que agressões sexuais de qualquer tipo são comuns demais para serem algo sensacionalista”.
Ela garante que entrou em contato com todos os colegas retratados no quadrinho antes da publicação. “Todos me deram apoio, mas vale dizer que é difícil saber com o que você está concordou quando te dizem que você vai aparecer num quadrinho e aí ele vira um best-seller.”
“Patos” foi unânime em elogios da crítica. No final de 2022, virou o primeiro quadrinho a entrar na tradicional lista de recomendações de leituras do ex-presidente Barack Obama. Este ano, ganhou dois prêmios Eisner, maior das HQs.
Beaton conta que moradores de Mabou, onde mora, colaram pedaços de papelão nas placas de estrada que levam à cidade, proclamando-a “Lar de Kate Beaton”. E que houve um evento local onde ela ganhou a chave do município.
Sobre colocar tudo isso no papel, ela diz: “Com certeza foi uma catarse. Depois que você escreve, reescreve, reescreve, aí desenha, redesenha, redesenha, aí edita e tudo mais, você ganha outro distanciamento, outra perspectiva. Não sei se eu precisava da catarse, mas eu precisava fazer esse livro”.
PATOS – DOIS ANOS NOS CAMPOS DE PETRÓLEO
Preço: R$ 99,90 (440 págs.)
Autoria: Kate Beaton
Editora: WMF Martins Fontes
Tradução: Caroline Chang
ÉRICO ASSIS / Folhapress