Humanidade criou Piroceno e fez o fogo passar de melhor amigo a pior inimigo, diz historiador

MADRI, ESPANHA (FOLHAPRESS) – O domínio do fogo e de suas aplicações, como cozinhar alimentos e modificar paisagens, contribuiu de forma decisiva para para o desenvolvimento do Homo sapiens. Milhares de anos depois, impulsionadas pelas mudanças climáticas, as chamas fora de controle se transformaram em um dos grandes problemas da humanidade.

A queima descontrolada de combustíveis fósseis e seus efeitos sobre o clima estariam entre as principais razões para chamar o atual período de “Piroceno”, a era dos grandes incêndios, com efeitos devastadores em boa parte do planeta.

Esse conceito foi cunhado por Stephen Pyne, professor emérito da Universidade Estadual do Arizona e historiador especializado em fogo. Autor de mais de 30 livros, o norte-americano publicou em 2021 uma obra inteiramente dedicada a apresentar a ideia de Piroceno e suas consequências.

“Nós estamos criando algo equivalente a uma Era do Gelo, mas com fogo”, comparou. “Se pegarmos todas as características das Eras do Gelo, e houve várias delas nos últimos 2,5 milhões de anos, como mudanças no clima, mudanças nos níveis do mar, mudanças na biogeografia e extinções em massa, nós temos isso, mas agora com o fogo.”

Na avaliação do pesquisador, a tentativa de suprimir totalmente o fogo contribui para agravar a situação. O uso tradicional das chamas em muitos casos foi substituído por recursos que usam energia movida a combustíveis fósseis ou por produtos químicos potencialmente poluentes.

Pyne destaca ainda que, em diversos pontos do mundo, a ausência de pequenos fogos naturais ou de queimadas controladas agravou os grandes incêndios, uma vez que há muito mais matéria orgânica para alimentar as chamas.

Por isso, ele defende a ampliação do que classifica como “fogo bom”: usos controlados que reduzam os efeitos nocivos dos grandes incêndios.

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PERGUNTA – O senhor pode explicar, em linhas gerais, o conceito do Piroceno?

STEPHEN PEYNE – O fogo é essencial para os humanos. Eu decidi então olhar a nossa história através da perspectiva do fogo.

Parece que estamos criando o equivalente, com fogo, de uma Era do Gelo. Se você pegar todas as características das Eras do Gelo, e nós tivemos várias nos últimos 2,5 milhões de anos, mudanças no clima, mudanças nos níveis do mar, mudanças biogeográficas, extinções em massa, nós temos isso, mas agora com o fogo.

Se você pegar todas essas características e passá-las para uma perspectiva de fogo, você vai basicamente ver o mundo que nós temos hoje.

A humanidade criou um pacto de ajuda mútua com o fogo há muito tempo, bem nas nossas origens. Agora, isso saiu completamente do controle. Nós pegamos o nosso melhor amigo, o fogo, que sempre foi nosso companheiro, e o transformamos no nosso pior inimigo.

P – E como isso aconteceu?

SP – Eu acho que tudo isso começa antes de as pessoas começarem a queimar combustíveis fósseis em grande escala, mas isso colocou todo o processo em uma nova escala. Acelerou tudo para além da capacidade da Terra de absorver as mudanças.

A Terra é também um planeta de fogo, e nós somos criaturas únicas quanto ao uso do fogo. Durante a maior parte da nossa história, o fogo e as pessoas tinham de operar com alguns pesos e contrapesos. Se algo se desequilibrasse, o sistema colapsava e era preciso recomeçar.

Quando começamos a queimar combustíveis fósseis, não há mais esses freios. Nós ganhamos a capacidade de continuar queimando dia e noite, no inverno ou no verão, na seca ou na umidade. Isso desequilibrou completamente as coisas. Nós já tínhamos alterado o clima, mas não nessa escala em que estamos agora. Atualmente, isso está fora de controle.

P – A relação das pessoas com o fogo também se alterou?

SP – No mundo desenvolvido, nós tiramos o fogo das nossas casas. Está praticamente fora das nossas cidades. Tudo é feito em máquinas ou fora da nossa visão, na forma de eletricidade ou o que seja. Nós não vemos fogo real.

Nós tiramos o fogo da agricultura e estamos tentando tirá-lo do sistema inteiro. E isso causou muitos problemas nas paisagens. Boa parte do planeta tem muito do “fogo mau” e pouco “fogo bom”.

P – O que é esse “fogo bom” que o senhor refere? Isso pode existir nas florestas brasileiras?

SP – É aquele velho conceito: a toxicidade de algo não depende só da substância, mas sim da dose. O fogo pode ser bom ou mau, dependendo das circunstâncias.

O Brasil tem um ótimo exemplo de fogo bom com o cerrado, que não poderia existir se não queimasse regularmente. Ele precisa do fogo, ou, do contrário, seria invadido por plantas e seus efeitos biológicos especiais seriam perdidos. O fogo bom pode ser positivo quando usado na escala adequada. Ele é certamente bom para a sustentação das savanas, como o cerrado.

É claro que não é a mesma coisa de entrar com uma retroescavadeira na amazônia, cortar uma parte grande da floresta e transformar isso em pasto, queimando esses locais.

Quando nós passamos pela revolução verde da agricultura moderna, tentamos encontrar substitutos para o fogo. Começamos a usar petroquímicos, muitos fertilizantes, grandes quantidades de pesticidas e herbicidas. Todas as coisas que fazíamos com o fogo, agora são feitas usando esses químicos. Isso começou a se tornar um problema de poluição, entre outras coisas.

P – O senhor considera que existe uma solução para essa era dos megaincêndios que vivemos hoje?

SP – Primeiro, temos de eliminar os fogos ruins. Esses queimam comunidades, matam pessoas, produzem problemas de saúde devido à grande quantidade de fumaça. Nós já sabemos muito sobre como evitar que as cidades queimem, mas, no mundo desenvolvido, parece que decidimos que as cidades não queimam mais, a menos que estejamos em uma guerra ou tenham uma grande revolta social.

É como dizer: a poliomielite e a peste bubônica já não são um problema, então podemos acabar com as medidas de saúde pública. A verdade é que agora as cidades queimando são um problema, e talvez os piores megaincêndios estão acontecendo em países desenvolvidos, que são justamente os que têm mais dinheiro e tecnologias.

O segundo ponto é colocar mais fogo bom em áreas onde eles são necessários para serviços ecológicos. O fogo bom pode ajudar a prevenir o fogo mau ao diminuir e rearranjar o combustível disponível para os incêndios ruins.

A terceira coisa é que nós temos de parar com a queima de combustíveis fósseis. Isso precisa acontecer o mais rápido possível. Mas, quando fizermos isso, ainda vamos precisar lidar com todos esses outros problemas com o fogo que já estavam presentes antes dos combustíveis fósseis.

Os fogos vão acontecer. A escolha a ser feita é que tipo de fogos nós teremos.

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RAIO-X

Stephen Pyne, 75

Historiador e professor emérito da Universidade Estadual do Arizona. Escreveu mais de 30 livros, principalmente sobre a história e gestão de incêndios em áreas selvagens e rurais, incluindo pesquisas abrangentes para os Estados Unidos, Canadá, Austrália, Europa e o mundo em geral. Além do fogo, sua bibliografia inclui obras sobre a Antártida, o Grand Canyon e a missão Voyager, da Nasa.

GIULIANA MIRANDA / Folhapress

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