BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Em sua cerimônia de posse neste domingo (10), o novo presidente da Argentina, Javier Milei, voltou a reverenciar, ainda que indiretamente, figura de Juan Bautista Alberdi (1810-1884), advogado, jurista e músico.
“Em 1853, depois de 40 anos da declaração da independência, com apoio de um pequeno grupo de jovens que hoje conhecemos como Geração de 37, nós decidimos como povo abraçar as ideias da liberdade”, disse Milei em seu primeiro discurso como presidente. “Assim, foi aprovada uma Constituição liberal com o objetivo de garantir os benefícios da liberdade para nós, para nossa posteridade e para todos os homens do mundo que desejem viver na Argentina.”
Nascido em Tucumán, mas tendo estudado direito em Buenos Aires, Alberdi pode ser considerado um dos próceres da então recém-nascida nação Argentina para a qual ávidos intelectuais buscavam saídas, fórmulas, projetos a longo prazo para um país que acabava de se tornar independente.
É correto afirmar também que Alberdi era um admirador de Adam Smith (1723-1790), considerado o pai do liberalismo econômico.
Daí a usar um personagem histórico para encarnar seus ideais e políticas nos dias de hoje –como Milei fez e faz–, vai um tanto de liberdade poética. Seria um pouco como o chavismo agarrar-se a Simón Bolívar como herói socialista, como se faz na Venezuela, quando sua biografia não permite essa interpretação. Sempre é preciso analisar o contexto.
Alberdi era um liberal, mas não um “libertário”, e quando falava de liberdade também estava se referindo aos mais de 20 anos que teve de viver no exílio, perseguido pelo caudilho José Manuel de Rosas (1793-1877), que era o governador de Buenos Aires, mas num contexto em que não havia autoridades provinciais de porte.
Alberdi, como Milei, advogava pelo fim do Estado. “A liberdade é o meio, não o fim, da política”, dizia. “Quando dizemos que ela fez da liberdade um meio, queremos dizer que se impôs ao Estado a obrigação de não intervir nas leis ou decretos restritivos ao exercício da produção; pois em economia, a liberdade do indivíduo e a não intervenção do Estado são duas expressões do mesmo fato.”
A Argentina tem uma relação conflituosa com seus heróis do passado. Tanto que após tanto discutir quais efígies deveriam estampar suas notas, acabou-se, aos poucos a escolher animais da fauna nativa. O episódio mais conhecido foi quando se retirou Julio Argentino Roca (1843-1914), que comandou a Campanha do Exército e dizimou boa parte da população indígena do país, da nota de 100 pesos. Ele foi substituído por Evita Perón durante o governo de Cristina Kirchner.
Mas a equação geral é simples. Os peronistas tendem a admirar Rosas, apesar de sua atitude autoritária, por ter pregado a unidade nacional e defendido a Argentina de ataques de ingleses e franceses. Já liberais e antiperonistas em geral preferem elogiar a chamada “Geração de 1837”.
Esta reuniu uma gama de intelectuais, escritores, romancistas e ensaístas que seguiam o modelo das associações românticas e revolucionárias da Europa.
Em um de seus livros mais famosos, o historiador Tulio Halperín Dongui (1926-2014) referia-se a seus projetos como aqueles que poderiam dar “uma nação para o deserto argentino”. A polícia rosista perseguiu esse grupo até dissolvê-lo; muitos foram para o exílio no Chile ou no Uruguai –caso de Alberdi, que depois ainda se radicaria um tempo na França.
Em 1852, quando Rosas é derrotado na Batalha de Caseros –com a participação de um intelectual ligado à Geração de 1837, Domingo Faustino Sarmiento–, Alberdi se anima. Em questão de semanas, escreve o livro “Bases e Pontos de Partida para a Organização Política da República Argentina”. Apesar de lançado no Chile, enviou uma cópia a Urquiza. A obra acabou sendo uma das fontes das Constituição de 1853.
Há frases e colocações de Alberdi que de fato poderiam estar no programa de Milei, por exemplo: “A onipotência do Estado é a negação da liberdade individual”, ou “os impostos são uma obstrução à civilização”, ou ainda “a riqueza das nações é obra das nações, não de seus governos”.
“Alberdi foi um grande admirador do modelo norte-americano de desenvolvimento interno, que se traduz na capacidade de consumo da população para mobilizar a capacidade de consumo da população para mobilizar a indústria e a economia”, diz o historiador Felipe Pigna.
Porém, ele assinala que Alberdi também via um papel essencial do Estado em várias áreas: “como a distribuição da terra, a adaptação dos imigrantes, a saúde e a educação”. Neste sentido, Milei se mostra algo mais radical, ao propor medidas que praticamente privatizam saúde e educação, como o sistema dos vouchers.
Pigna conclui que o pensamento de Alberdi foi muito mais progressista do que a imagem dele que ficou conhecida na história. “Ele foi muito progressista para seu tempo, porque estimulou a educação pública, gratuita e laica, propondo retirar da igreja o monopólio que possuía da educação”.
SYLVIA COLOMBO / Folhapress