CARUARU, PE (FOLHAPRESS) – O São João de Caruaru, no agreste de Pernambuco, tem muito forró, quadrilha e comidas típicas. O evento festivo, que mobiliza a cidade durante o mês de junho, se estende também a outras áreas culturais, ajudando a impulsionar o calendário festivo na região.
Uma das manifestações mais reverenciadas em Caruaru é a dos bacamarteiros, que são atiradores que usam a arma conhecida como bacamarte para disparar tiros de pólvora seca durante as apresentações. Os grupos são formados por dezenas de pessoas, predominantemente homens, e fazem seus atos na região da antiga estação ferroviária, um dos principais pontos históricos e turísticos da cidade.
Um dos grupos, o 27º batalhão, é liderado por uma mulher, Ângela Oliveira, 62, há cerca de dois anos. Ela atua há 30 anos como bacamarteira e enfrentou resistências para superar o machismo e chegar à atual posição de liderança.
Moradora da zona rural de Caruaru, Ângela é uma das homenageadas do São João em 2024. Ela começou a se interessar pelo bacamarte ainda na infância e, anos depois, passou a ir todos os anos de São Paulo, onde foi morar, para o interior de Pernambuco para participar da festa.
“Fui a primeira bacamarteira de Caruaru. Lutei muito, quebrei o preconceito, porque era brincadeira de homens”, conta. “Não foi fácil. O chefe da época deu muito não. Era ‘não, não’, mas eu falava sim.”
Na primeira apresentação, Ângela vestiu calça jeans, uma camisa do pai, chapéu e lenço, surpreendendo o então chefe do grupo de bacamarteiros à época, que antes tinha negado a sua entrada no coletivo. “Ele olhou pra mim, não falou mais nada, porque ele sabia que não tinha como, né? Estou até hoje. Meu pai ficou 78 anos como bacamarteiro.”
Ângela diz que, ainda hoje, tem que lidar com situações de preconceito. “No meio daqueles homens, todo mundo queria me ajudar. Eu dizia que sou mulher, mas eu estou igualzinho a vocês aqui, não preciso”.
Atualmente, o grupo chefiado por ela possui mais de 20 homens e 14 mulheres para fazer as apresentações. “A cada ano, aumenta mais o número de mulheres.”
No dia a dia, o principal cuidado é sobre a condução dos disparos. Para manusear o bacamarte e ter a sua posse, é necessária permissão do Exército. “Ninguém nunca se acidentou nesses anos todos, porque eu tenho o maior cuidado, nós estamos carregando uma arma. Sempre passo isso para os bacamarteiros.”
Em 2000, Ângela voltou de São Paulo para Caruaru.
O pé de serra do 27º batalhão contempla o forró de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro e mescla a música com as coreografias do bacamarte — sem ensaios antecipados. Centenas de pessoas assistem às apresentações em um dos polos do São João de Caruaru.
Os bacamarteiros são divididos em dois grupos e formam, entre eles, uma espécie de túnel, por onde o público presente passa e dança junto. Diversas pessoas tiram fotos nas ruas com os protagonistas do bacamarte após as festas.
Irmão, cunhado, marido e o neto de Ângela, de sete anos de idade, também participam. O pequeno Moisés é tido como o futuro do batalhão e se apresenta com arma de brinquedo, desde o primeiro ano de vida. “O que mais gosto é me apresentar com minha avó”, diz.
Também na região da estação ferroviária de Caruaru, fica o espaço do Theatro de Mamulengos MamuSebá, em um galpão montado pela prefeitura. Mamulengos significa mãos molengas, ou mãos moles. As bocas dos bonecos se movem por meio das mãos dos condutores da apresentação.
O enredo das apresentações inclui a história de Caruaru e do São João, das tradições juninas e também da fauna e flora locais, entre outros temas.
O organizador do teatro de mamulengos em Caruaru é Sebastião Alves, 67, conhecido como Sebá, que monta todo o espaço interno dentro do galpão provisório e é o único mamulengueiro da cidade há quase 40 anos.
A promessa é que, no mês de julho, o teatro seja transferido para um galpão definitivo, com melhores condições, incluindo ar-condicionado.
O teatro conta atualmente com 15 pessoas –dessas, nove reforçam a equipe durante o período do São João. Parte dos integrantes é ex-usuária de droga, que começou a trabalhar no local após frequentar oficinas promovidas pelo MamuSebá.
“Aplicamos a oficinas de papel machê, em perna de paus, maquiagem, a história do teatro de mamulengos, tudo isso. Nós éramos considerados invasores. Isso aqui era uma verdadeira cracolândia. Conseguimos ainda tirar 30, 40 jovens desse mal da vida, da droga”, diz Sebá.
Sebá nasceu em Sertânia, no sertão pernambucano, a 197 quilômetros de Caruaru. Caçula de cinco irmãos, começou a trabalhar aos nove anos de idade. Já foi padeiro e ensacador de feijão.
Seu sonho era trabalhar com cinema. No final dos anos 1970, conseguiu uma vaga para atuar em um grupo de artistas locais e nunca mais deixou a área.
O local onde é feito o espetáculo enche antes das apresentações, que são gratuitas. “Não é só reconhecimento. É porque não se trabalham espaços culturais para as crianças. Aqui a criançada sai aprendendo alguma coisa”, afirma Sebá.
Um lustre de quatro metros de largura e colunas internas de três metros, composto por 80 lâmpadas e 1,5 milhão de unidades de latas de alumínio colhidas por catadores, forma um balão de São João ao centro do espaço.
Cerca de 200 crianças passam por noite pelo teatro, estimam os organizadores. A estimativa de Sebá é que 1,5 milhão de pessoas tenham passado desde 1985 para assistir aos mamulengos conduzidos por ele e sua equipe.
JOSÉ MATHEUS SANTOS / Folhapress