SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os trabalhadores vão à luta. Entalhados em madeiras inteiriças, dezenas deles figuram pequeninos, os corpos todos emendados, sendo um a continuação do outro. Juntos, formam três círculos, um em cima do outro.
A escultura do artista mineiro Geraldo Teles Vieira, mais conhecido como GTO, simboliza o trabalho coletivo na maquinação do mundo, a roda-viva dos dias que se arrasta, como marcavam os milenares relógios de sol. A escultura de GTO se funde ao pensamento de Mário Pedrosa, derradeiro titã da crítica de arte do Brasil.
Atado ao século 20, Pedrosa acreditava na função social da arte e em sua produção colaborativa. Morto há quatro décadas, sua ausência é sentida num contexto de desaparecimento da figura do crítico que escreve para jornais e intervém no debate cultural.
Pioneiro, ele anteviu a luta pela diversidade nas artes, como evidenciado agora, no relançamento de sua obra e nas mostras “Ocupação Mário Pedrosa”, no Itaú Cultural, e “Ensaio para o Museu das Origens”, no Instituto Tomie Ohtake e no próprio Itaú Cultural, onde está a obra de GTO.
Nesse ensaio-exposição, os organizadores da exposição voltam ao ano de 1978, quando o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o MAM do Rio, foi consumido por um incêndio. Em seu lugar, Pedrosa pensou que a instituição deveria ser reconstruída em novas bases, abrigando os acervos do Museu do Índio, do Museu do Negro, do Museu de Arte Virgem e do Museu de Artes Populares.
Embora nunca tenha se concretizado, a iniciativa impressiona, se considerado o contexto atual, de valorização da cultura indígena e afro-brasileira.
O Museu das Origens seria uma resposta à crise do sistema artístico, identificada pelo crítico na fase final de sua obra. Segundo Pedrosa, a liberdade criativa era domada, durante a ditadura militar, pelos desígnios do mercado, os artistas não trabalhavam coletivamente e as instituições sofriam com a repressão e a falta de investimento.
De acordo com Izabela Pagu, uma das organizadoras de “Ensaio para o Museu das Origens”, a crise ainda persiste, ao modo do século 21, com a necessidade de diversificar a produção artística e a mercantilização dos processos culturais.
“Pedrosa não separava a arte da estrutura socioeconômica que condicionava o momento histórico”, diz ela, estudiosa da obra do crítico. “Como no tempo presente, ele propunha a inversão da hierarquia social, em que grupos historicamente marginalizados pudessem participar da modernidade.”
A mostra abriga os acervos de 20 instituições do país, que materializam o pensamento pedrosiano. Logo na entrada, um cartaz anuncia o espaço destinado à parte do acervo do Museu do Marajó, que fica no município de Cachoeira do Arari, no interior do Pará. Ali, estão as cerâmicas marajoaras, relíquias de arte indígena saqueadas pelos europeus no período colonial e que hoje integram museus do velho continente.
Adiante, está a reprodução do Maracatu Nação Elefante, simbolizando o Museu do Homem do Nordeste, sediado no Recife. Lá vai o elefantinho, tão pimpão em cima da carroça, mas seus olhos mentem, inexistentes, fabricados de poucos recursos e “alheios a toda fraude”, como Carlos Drummond de Andrade escrevera no célebre poema do livro “A Rosa do Povo”, publicado em 1945.
A mostra atualiza o pensamento de Pedrosa, incluindo obras que tematizam a questão ambiental e a de sexo e de gênero. A artista trans Diambe da Silva expõe uma tela em que as formas orgânicas têm o tracejado descendente, num enraizamento que sugere a representação de leguminosas. As raízes arroxeadas se fundem à terra marrom, em harmonia com o verde vivaz.
No Tomie Ohtake, duas salas completam a mostra. Numa delas, está a tela “Fazenda de Chá no Itacolomi”, concebida há 65 anos por Djanira, que mostra mulheres negras trabalhando no campo. Considerada durante muito tempo como naïf, a artista demonstra apuro em sua técnica popular e reflete aquela necessidade do labor coletivo.
No mesmo espaço, estão dispostos dezenas de desenhos do artista Fernando Diaz, paciente da Seção de Terapêutica Ocupacional, idealizada por Nise da Silveira, de quem Pedrosa era amigo. Ali, os pacientes encontravam na arte suas sessões terapêuticas. Os desenhos de Diaz formam círculos repetitivos que, justapostos, parecem fotogramas de cinema, com o aumento gradual da velocidade do tracejado.
“Pedrosa foi um agente central para a formação dos paradigmas da arte brasileira”, diz Paulo Miyada, que também organiza a mostra. “Todos os artistas que chegaram aos anos 1970 sendo valorizados passaram pelos textos desse autor.”
Didaticamente, o Itaú cultural oferece ao público a chance de conhecer a vida e a obra do crítico de arte, na linha do tempo da “Ocupação Mário Pedrosa”, que expõe dez vídeos e mais de cem fotografias. A carreira do crítico pernambucano se inicia nos anos 1930, trabalhando como redator, depois de estudar estética, economia e sociologia na Alemanha.
Por sua militância, foi preso, em 1932, durante o governo de Getúlio Vargas e, cinco anos mais tarde, se exilou em Paris. Em 1945, retornou ao Brasil e passa a escrever críticas para este jornal, para o Correio da Manhã e para o Jornal do Brasil.
Durante a ditadura militar, viveu como exilado político no Chile. De volta ao seu país, fundou o Partido dos Trabalhadores, o PT, em 1980. A “Ocupação” traz uma carta aberta, endereçada ao General Emílio Garrastazu Médici e assinada por Pablo Picasso, Alexander Calder e Henry Moore, que protestavam contra uma ordem de prisão do crítico.
“Pedrosa era um jornalista, ele não era fruto do ambiente acadêmico. Seu aperfeiçoamento se deu no trabalho diário na imprensa, sendo um intelectual de mídia, figura escassa atualmente”, afirma Marcos Augusto Gonçalves, editor do caderno Ilustríssima, que organiza a mostra em parceria com Quito Pedrosa, neto do autor.
Todos os artigos de Pedrosa são relançados agora pela Companhia das Letras, com o primeiro volume de “Obra Crítica” –o segundo tomo chega às livrarias no ano que vem. “Foi uma tarefa hercúlea”, diz Quito Pedrosa, que esteve à frente da edição. “Tive de buscar referências para a compreensão, até porque o objetivo desse relançamento é tornar a obra ainda mais acessível.”
Até deflagrar a crise na arte, o autor uniu sua militância ao exercício da crítica em duas fases anteriores de seu pensamento. Nos artigos “A Ação da Presença da Arte” e “A Força Educadora da Arte”, ambos publicados em 1946 e incluídos no primeiro volume da nova edição, Pedrosa vislumbra a arte como ferramenta para a transformação social.
Nesse primeiro período, o figurativismo de Candido Portinari e Di Cavalcanti ainda parece a ele a forma idônea para a representação da temática social. Pouco a pouco, Pedrosa muda o seu pensamento em favor da arte abstrata, o que se evidencia em “A Máquina, Calder, Léger e Outros”, de 75 anos atrás. Conjugando o estrangeiro ao brasileiro, Pedrosa encontra na abstração, da arte concreta e neoconcreta, uma ferramenta universal.
A representação já não corresponderia ao que chama de pós-modernidade. O importante seria uma linguagem acessível ao coletivo, que possibilitasse a expressão artística de todo cidadão.
Pouco a pouco, o autor passa a defender a autonomia da arte, acreditando que a liberdade criativa não deveria se subordinar a ideologias. Ao contrário, a intervenção na esfera política poderia se dar pela linguagem, ela mesma.
Um dos principais críticos atuantes no Brasil, Paulo Herkenhoff se diz um discípulo de Mário Pedrosa, um pensador que, segundo ele, mudou a profissão no país. Se antes era impressionista, a crítica passou a ser condicionada pelo rigor do conhecimento. “Ele mostrou que a arte é o exercício da liberdade”, afirma Herkenhoff. “Mário Pedrosa é o farol da nossa cultura.”
Ao mesmo tempo, Herkenhoff lamenta o sumiço da figura do crítico que escreve para jornais. Ele diz que o pensamento sobre a arte ficou encastelado nas universidades, destinada ao leitor especializado. Segundo ele, as redes sociais causaram uma dispersão do pensamento, porque não comportam “alguns faróis, mas milhares de faróis”. “Grande parte da crítica se envolve com o mercado, escrevendo para as galerias. A crise também é ética”, diz ele.
Izabela Pagu, a estudiosa da obra de Pedrosa, também identifica que o desaparecimento do crítico é um sintoma da persistência da crise na arte. E vai além. Se é verdade que o mercado tenta, no século 21, inverter a hierarquia da produção artística, também se pode afirmar que o mercado controla a mesma produção social, diz ela.
Sentindo a ausência de um debate público sobre arte, Paulo Miyada enumera três fatores para o desaparecimento do crítico. Em primeiro lugar, diz que os cadernos de cultura diminuíram de tamanho, com a crise financeira da imprensa ao redor do mundo.
Depois, corrobora a visão de que a crítica foi absorvida pelas instituições e, enfim, aponta um mal-estar na era das redes sociais. No século 21, o importante, ele afirma, é a quantidade de visualizações suscitadas por uma publicação na internet, não a construção de juízos qualitativos sobre a obra de arte em questão. “Só importa a quantidade de acessos no Instagram”, diz Miyada. “Não há mais espaço para a reflexão.”
ENSAIO PARA O MUSEU DAS ORIGENS
Quando: Até 28 de janeiro; ter. a dom., das 11h às 19h
Onde: Itaú Cultural – av. Paulista, 149, São Paulo; Instituto Tomie Ohtake – r. Coropé, 188, São Paulo
Preço: Grátis
Classificação: Livre
OCUPAÇÃO MÁRIO PEDROSA
Quando: Até 18 de fevereiro; ter. a dom.; de 11h às 19h
Onde: Itaú Cultural – av. Paulista, 149, São Paulo
Preço: Grátis
Classificação: Livre
OBRA CRÍTICA, VOL. 1
Preço: R$ 119,90 (456 págs.)
Autoria: Mário Pedrosa
Editora: Companhia das Letras
GUSTAVO ZEITEL / Folhapress