SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – Que bloco é esse? Corria o zunzunzum nos meses que antecederam o Carnaval de 1975 nas ladeiras do Curuzu, bairro que nasceu da costela da Liberdade, uma das regiões mais negras de Salvador. Turbantes na cabeça, cabelos rastafári, roupas coloridas inspiradas nos panos africanos e tambores em potência máxima.
Agentes da ditadura estavam à espreita, de olho naqueles jovens com ideias de poder negro que vinham do norte do Atlântico, mas que mantinham os dois pés fincados na cultura afro-brasileira.
Foi em novembro de 1974 que os jovens Antônio Carlos dos Santos, o Vovô, e Apolônio Souza de Jesus Filho (1952-1992), o Popó, fundaram o Ilê Aiyê, um bloco de negros e para negros que teve como berço um terreiro de candomblé jeje-nagô liderado pela ialorixá Mãe Hilda Jitolu.
O bloco, que neste ano completa 50 anos, ganhou as ruas no Carnaval, fincou raízes no Curuzu e foi pioneiro dentre os blocos afro para se tornar uma das maiores expressões da luta política do povo negro do país.
“O Ilê Aiyê foi a grande revolução que ocorreu na época da ditadura em Salvador. Muitas pessoas de outros estados pensavam que era mais um levante, porque aqui foi um território de muitos levantes”, relembra Arany Santana, 72, diretora licenciada do bloco.
A comparação tinha respaldo na história. Salvador, cidade que abrigou uma das maiores confluências de escravizados do Brasil no período colonial, também foi palco de rebeliões lideradas por negros, como a revolta dos Búzios, em 1798, a revolta dos Malês, em 1835, e a greve dos ganhadores, em 1857.
Foi nessa fonte que aqueles jovens se ancoraram para criar o Ilê Aiyê, um bloco formado exclusivamente por negros, e levar para a avenida o Carnaval que antes ficava restrito às ruas dos bairros pobres de Salvador.
“Os grandes blocos eram fechados para pessoas negras”, relembra Antônio Carlos do Santos, 71, o Vovô do Ilê.
O bloco seria batizado com o nome Poder Negro, inspirado no lema “black power” e nos Panteras Negras. Mas a ideia foi deixada de lado após conselhos de Mãe Hilda, mãe de Vovô, que temia a repressão da ditadura. Prevaleceu o nome Ilê Aiyê expressão iorubá que pode ser traduzida como “nossa casa” ou “nossa terra”.
O Ilê desfilou pela primeira vez no Carnaval de 1975, causando espanto entre as elites da Bahia e um despertar para a pauta racial em uma das cidades mais negras do país.
“Fomos escoltados pela polícia e fomos vaiados pela população, com alguns aplausos tímidos em meio às vaias. Fomos considerados negros rebeldes que estavam espalhando racismo na cidade”, lembra Arany, destacando que naquele período prevalecia no país o conceito de democracia racial.
O jornal A Tarde, um dos mais tradicionais da cidade, publicou na época a nota “Bloco racista, nota destoante”, afirmando que o Ilê Aiyê havia proporcionado “um feio espetáculo” com uma “imprópria exploração” do tema do racismo no Carnaval. Anos depois, o jornal se retratou.
Mas a semente já estava no solo arado. No primeiro ano, menos de 100 pessoas desfilaram no bloco. O número foi crescendo e superou a marca de mil associados no Carnaval de 1978.
Nos anos seguintes, inspirou a criação de outros blocos afro em Salvador, como Olodum, Muzenza e Malê Debalê, e também em outros estados, caso do bloco Aláfia, de São Paulo.
Ainda nos anos 1970, o artista plástico Jota Cunha criou a identidade visual do bloco: uma máscara africana com quatro búzios abertos na testa e que formam uma cruz, chamada de perfil azeviche. O azeviche é uma gema fóssil de cor preta que é associada à pele negra e ao barro das terras de Liberdade. As cores branca, vermelha e amarela, escolhidas para as vestimentas do bloco, completam a identidade visual.
Na avenida, o Ilê foi um dos principais responsáveis pela reafricanização do Carnaval de Salvador, com músicas e desfiles que exaltam a cultura negra, a história da África, os protagonistas das lutas anticoloniais e a rebeldia de líderes negros do Brasil.
O bloco cresceu, e o Carnaval passou a ser apenas a sua face mais visível. O Ilê criou raízes em sua comunidade, passando também a desenvolver projetos sociais que incluem escola e aulas de dança, de canto e de percussão, além de cursos profissionalizantes.
Na música, sua principal face é o samba afro da BandAiyê, por onde já passaram ícones da percussão baiana como Neguinho do Samba, Carlinhos Brown e Mestre Bafo, este o primeiro mestre de bateria do Ilê.
A história do bloco, contudo, é cercada de percalços. Após se consolidar no final dos anos 1970 com a ajuda de artistas como Gilberto Gil, o Ilê Aiyê viu canções do bloco se tornarem sucesso nas décadas seguintes, sobretudo com Daniela Mercury. Mas acabou invisibilizado a partir do final dos anos 1990 com o domínio de um modelo de carnaval baseado em camarotes e blocos de trio.
Mesmo sendo uma das principais organizações civis voltadas para a cultura negra do Brasil, o bloco enfrenta todos os anos dificuldades para captar patrocínios no setor privado. Em 2023, ano anterior ao cinquentenário, desfilou apenas com o apoio do Governo da Bahia e da Prefeitura de Salvador.
A presença feminina também é uma das marcas do bloco, que segue a tradição matriarcal baiana que vem dos terreiros de candomblé. As mulheres são cerca de 60% dos associados do bloco, cuja referência máxima é a liderança de Mãe Hilda Jitolu, que foi conselheira e protetora espiritual do Ilê.
Há 43 anos, são as mulheres que protagonizam a Noite da Beleza Negra, principal evento pré-carnavalesco do bloco. As ruas e vielas da Liberdade são tomadas por foliões, e a Senzala do Barro Preto, sede do bloco, abriga a escolha da Deusa do Ébano em uma noite de gala.
A eleita para representar o bloco este ano foi Larissa Valéria Sá Sacramento, 29, coreógrafa e microempresária do Curuzu cuja história se confunde com a do bloco, que frequenta desde criança.
“Ah, se não fosse o Ilê Aiyê… O encontro dos meus pais foi dentro do bloco. Meu pai percussionista, minha mãe associada, o amor surgiu e uma criança nasceu. O Ilê faz parte da minha história”, disse Larissa no último dia 13 de janeiro, pouco depois de ser escolhida Deusa do Ébano.
O Ilê Aiyê estreia no Carnaval deste ano nesta quinta-feira (8), quando faz a abertura oficial da festa em um encontro de trios elétricos com Ivete Sangalo, Carlinhos Brown e BaianaSystem.
No sábado (10), o bloco vai tomar as ladeiras do Curuzu em sua tradicional saída na Senzala do Barro Preto. E volta à avenida na segunda (12) e terça-feira (13), com desfiles no circuito do Campo Grande.
Neste ano, o Ilê será embalado pela canção Bodas de Ouro, tema escolhido para celebrar os 50 anos do início do sonho de Vovô e Popó, abençoado pelos búzios de Mãe Hilda e abraçado pela Bahia.
A luta contra o racismo e pela igualdade seguirá no horizonte do Ilê enquanto for preciso. Dia após dia, Carnaval após Carnaval, em busca de uma vitória naquilo que Arany Santana chama de guerra impossível.
“Não somos ingênuos, sabemos que a luta está ainda no começo. Ela não vai terminar com 50, nem com 100 anos. A nossa estrada é muito árdua, mas a sensação é de que ganhamos uma batalha.”
JOÃO PEDRO PITOMBO / Folhapress